domingo, 18 de novembro de 2012

ENTREVISTA FERNANDO SABINO


Nos últimos domingos o Outros 300 tem postado várias entrevistas ocorridas no programa Roda Viva da TV Cultura. Hoje, um dos grandes da literatura nacional, e grande ídolo meu, Fernando Sabino é o entrevistado. Ele falará, claro, sobre literatura, mas também sobre sociedade, política, vida, amores... É uma grande entrevista, vale a pena acompanhá-la.



25/12/1989
O escritor diz que, infelizmente, a crônica literária vem perdendo lugar no jornalismo, foi subjugada pela ditadura da comunicação que se sobrepõe à expressão da imaginação criadora
Programa gravado
Jorge Escosteguy: Boa noite, estamos começando mais um Roda Viva. O convidado do Roda Viva desta noite é o escritor Fernando Sabino. Para entrevistar Fernando Sabino esta noite, nós convidamos os seguintes jornalistas e escritores: Ricardo Soares, jornalista da TV Cultura; Sérgio Pinto de Almeida, editor da revista Guia Itália 90; Ruy Castro, escritor e jornalista; Mário Viana, editor assistente da revista Veja São Paulo; Marcos Faerman, repórter especial do Jornal da Tarde e editor-chefe da revista Crises; Osmar Freitas, editor da revista Ícaro; Caio Fernando Abreu, escritor e jornalista da revista AZ e Cláudia Boyago, repórter da Rádio Nova Eldorado AM. Na platéia assistem ao programa convidados da produção. O escritor Fernando Sabino é mineiro de Juiz de Fora e tem 66 anos. Seu livro mais conhecido, O encontro marcado, representa um marco na literatura brasileira por se tratar do primeiro romance moderno urbano escrito na década de 50, e é um sucesso de vendas até hoje. Fernando Sabino escreveu ainda vários livros, como O grande mentecapto, O homem nu, e o último foi o livro de memórias de viagem, chamado De cabeça para baixo. Boa noite, Fernando Sabino.
Fernando Sabino: Boa noite. Antes de mais nada, eu queria fazer um reparo.
Jorge Escosteguy: Faça-o.
Fernando Sabino: Quem é mineiro de Juiz de Fora é o Fernando Gabeira [escritor, jornalista e político que, em 1989, concorreu à presidência da República, obtendo 0,18% dos votos],  não sou eu não.
Jorge Escosteguy: Você é mineiro de onde?
Fernando Sabino: Eu sou mineiro de Belo Horizonte. Tem o Affonso Romano [de Sant'Anna, poeta, ensaísta, cronista e professor, natural de Belo Horizonte] também, que é de Juiz de Fora.
Jorge Escosteguy: Está feito o reparo e a correção.
Fernando Sabino: Rubem Fonseca [escritor e roteirista de cinema, cujas obras geralmente retratam, em estilo seco e direto, a luxúria e a violência urbana, em um mundo onde marginais, assassinos, prostitutas, delegados e pobres coitados se misturam] também.
Jorge Escosteguy: Está feito o reparo e a correção.
Fernando Sabino: Não, eu preferia ser de Diamantina, sabe? Mas infelizmente sou de Belo Horizonte.
Jorge Escosteguy: Você está trancado de novo escrevendo um novo livro, um novo romance?
Fernando Sabino: Não, eu estou pensando em me trancar para ver se consigo escrever um novo livro. É uma coisa um pouco diferente.
Jorge Escosteguy: Está dependendo do quê?
Fernando Sabino: Dependendo de vencer essa preguiça, que é um bloqueio, e, segundo, você sabe, a gente escrever assim sobre uma coisa que você não sabe é como você pretender ir dormir para sonhar alguma coisa que você não sabe o que é. Então dá até um pouco de azar falar nisso, sabe? Porque você pensa que vai sonhar com a Marilyn Monroe e sonha com o Frankenstein [nome do personagem cientista que, na história criada por Mary Shelley, construiu o monstro que seria conhecido pelo nome de Frankenstein], não é?
Jorge Escosteguy: Você precisa se isolar para escrever? O isolamento, para você, é uma coisa fundamental?
Fernando Sabino: Tudo conspira contra escrever. Vencer a distância que separa você da máquina de escrever é o mais difícil. Como dizia Sinclair Lewis [(1885-1951), escritor e crítico social norte-americano, conhecido pelos trabalhos satíricos e documentários, foi o primeiro de seu país a receber o prêmio Nobel de literatura em 1930], se botar naquela postura de quem vai escrever. Escrever, segundo Sinclair Lewis, é a arte de sentar a bunda na cadeira. [risos] Há esse problema do bloqueio, da distância que te separa. Depois que começa é fácil. Aliás como tudo na vida, não é?
Jorge Escosteguy: Eu estou aqui com o livro, vou fazer o merchandising do Ruy Castro, que lançou recentemente uma antologia, O melhor do mau humor, com várias frases, e há frases aqui sobre literatura, e tem uma do Samuel Johnson [crítico literário, ensaísta e lexicógrafo inglês, foi uma personalidade dominante da vida literária na Inglaterra do século XVIII], que diz: “ninguém, a não ser um idiota, escreve a não ser por dinheiro”. Você escreve por dinheiro, você ganhou muito dinheiro escrevendo, por ser escritor famoso?
Fernando Sabino: Não, se eu tivesse ganho muito dinheiro para escrever, eu não escreveria por dinheiro, eu já teria dinheiro. Mas eu escrevo por dinheiro sim.
Jorge Escosteguy: Ruy. Ah, por favor, Osmar, desculpe.
Osmar Freitas: Por falar em dinheiro, já dá para viver de direitos autorias?
Fernando Sabino: Dava, até a inflação me comer pela perna. Hoje eu estou igualzinho o Brasil, eu estou gastando mais do que arrecado.
Jorge Escosteguy: O seu editor paga os seus direitos autorais atualizados pela BTN [Bônus do Tesouro Nacional, criado pelo governo em 89, com o objetivo de prover recursos necessários à cobertura de déficits orçamentários ou à realização de operações de crédito por antecipação de receita e efetuar troca voluntária por Bônus da Dívida Externa, foi extinto em 91] ou...?
Fernando Sabino: Não, eu recebo com 90 dias, e esses 90 dias não são “beteenizados”. De modo que quando eu recebo já não tem mais o valor de 10% que teria se recebesse à vista. Mas ele também recebe com 60 dias, 45 dias, há uma defasagem entre a venda do livro e o pagamento ao editor, e ele, por sua vez, transfere essa defasagem para o escritor com uma pequena margem de garantia.
Ruy Castro: Fernando, há uma velha frase de que tudo o que é fácil de ler é muito difícil de escrever. Todos os seus livros são muito fáceis de ler.
Fernando Sabino: Muito obrigado.
Ruy Castro: São difíceis de escrever?
Fernando Sabino: Olha aqui, o elogio que mais me tocou foi feito pela mulher do Hélio Pellegrino [(1924-1988), psicanalista, articulista e poeta mineiro], a minha querida Maria Urbana Pellegrino, que diz que foi contar uma história minha para uma amiga, uma história de quatro a cinco linhas, e ela falou: “e eu quebrei a cara porque eu acabei tendo que buscar o livro para ler para ela aquelas cinco frases”. E ela disse o seguinte: “eu descobri que escrever parece com um balé, você vê uma bailarina fazer um passo muito bonito, muito leve, vai fazer a mesma coisa e cai no chão e quebra a perna, foi o que me aconteceu”. E eu fiquei muito tocado por isso, porque realmente custa muito esforço para ser simples, é um trabalho terrível para você conseguir chegar a essa simplicidade que parece que é fácil de ler e, portanto, parece que foi fácil de escrever. E eu fiquei muito gratificado agora de você ter dito que é fácil de ler.
Jorge Escosteguy: Marcos Faerman, por favor.
Marcos Faerman: Eu queria fazer uma alusão aqui ao seguinte, numa antiga entrevista sua, o senhor fala do vestibular de hoje em dia, cheio de cruzinhas, em que as pessoas não pensam muito. O senhor até usa uma expressão, que é um “vestibular de mentecaptos”. E tem uma outra referência: “Eu conheço jovens de 20 anos de idade que nunca leram um livro”. Eu fico feliz em comunicar ao senhor que, segundo a revista Veja, na sua última edição, o nosso atual presidente da República [Fernando Collor de Mello], o que foi eleito, diz ali naquela matéria que ele lê cinco livros por ano. Ou seja, ele lê 0,8 de livro em cada dois meses. O que o senhor acha disso?
Fernando Sabino: Depende dos livros que ele lê, né? Sei lá o que ela anda lendo. [risos]
Marcos Faerman: Mas ele está lendo bastante... Cinco por ano...
Fernando Sabino: É. Não, eu acho o seguinte, que esse negócio do vestibular, quer dizer, que dispensava, não sei se ainda é assim hoje em dia, eu estou meio afastado, meio remoto nesse assunto, mas que dispensa o aluno de redigir, impede que ele aprenda a se expressar através da linguagem verbal escrita. E há uma grande diferença entre escrever e redigir. Todo ser humano alfabetizado tem obrigação de exprimir o seu pensamento através da palavra escrita. Há uma grande diferença. Inclusive, eu me lembro muito de uma coisa que me impressionou, foi do Truman Capote [(1925-1984), escritor norte-americano], que disse que ele levou muito tempo entre aprender a diferença entre escrever mal e escrever bem, porque ele diz que Deus dá a vocação e o chicote. Então, que a grande diferença entre escrever mal e escrever bem, ele conseguiu aprender com o esforço próprio. Mas, de repente, ele descobriu que havia uma grande diferença entre escrever bem e a obra de arte, aí é que entra o chicote.
Ricardo Soares: Fernando, deixa eu voltar um pouquinho atrás. Em 1942, no dia 10 de janeiro, um rapaz de 18 anos recebia na casa dele uma carta que tinha o seguinte remetente, um endereço: Rua Lopes Chaves, 546. Eu queria que o senhor contasse quem era quem lhe enviou a carta e que importância teve essa carta um pouco para a sua vida literária.
Fernando Sabino: Foi que dia? 10 de janeiro?
Ricardo Soares: 10 de janeiro de 1942.
Fernando Sabino: 10 de janeiro de 1942?
Ricardo Soares: 42.
Fernando Sabino: Talvez tenha sido o acontecimento mais importante da minha vida literária.
Ricardo Soares: Eu queria que você falasse quem mandou a carta.
Fernando Sabino: Porque foi exatamente o início de uma correspondência com o morador dessa casa, Rua Lopes Chaves, 546, que todo mundo familiarizado com literatura conhece, porque ele tem, inclusive, um poema que fala nisso: “aqui nesta rua Lopes Chaves”, Mário de Andrade. Eu tinha o quê? Em 1942 eu estava com 18 anos, tinha acabado de publicar um livro de contos. E tinha mandado esse livro para ele, e ele me respondeu com essa carta, que foi uma coisa fantástica na minha vida, foi um grande acontecimento. E a partir daí nós iniciamos uma correspondência, em que ele, com uma paciência bovina, agüentou esse rapazinho pernóstico, e desaforado, e tímido, e atrevido, que escrevia perguntando tudo, e ele se dispôs a responder tudo, todos os grandes problemas que passam pela cabeça de um quase adolescente.
Ricardo Soares: Que tipo de lição você tirou dessa correspondência?
Fernando Sabino: Perdão...
Ricardo Soares: Que tipo de lição você tirou dessa correspondência?
Fernando Sabino: Do ponto de vista literário, todas que eu podia tirar, e do ponto de vista humano também. Nós vivíamos numa época em que estava sendo questionado o problema da participação do artista em relação ao mundo porque era a época da Guerra [Segunda Guerra Mundial], época do fascismo em plena efervescência, o Brasil entregue à ditadura de Getúlio. Tudo isso provocava uma necessidade de participação ativa do escritor com relação aos problemas de seu tempo. E o Mário era muito imbuído disso, e nos conscientizou muito com relação a isso. Eu me lembro que tinha coisas assim que ele dizia: “a consciência é gratuita, mas a convicção é adquirida”. A consciência, todo mundo tem, agora, você adquire uma convicção – que nós sejamos até inimigos por convicção, mas que você se prepare para viver por essa convicção e, se preciso, morrer por ela. Essa lição me marcou muito fundo. E eu achei que o caminho que ele ditou para mim dentro da arte era o caminho que eu sempre persegui dentro da literatura, que é o caminho do nhem-nhem-nhem, de ir devagarzinho, de não querer arrombar a porta aberta, de não querer vencer da noite para o dia. Ele até cita alguns que tentavam vencer da noite para o dia. Se você está familiarizado com as cartas, você deve se lembrar. Foi uma experiência absolutamente extraordinária e que jamais se repetirá com ninguém. Hoje eu até sofro um pouco com isso porque às vezes tem pessoas que me escrevem cartas - jovens - esperando, tendo lido o livro das cartas dele, esperando que eu faça o mesmo papel. E, primeiro, eu não sou Mário de Andrade, eu não tenho competência para isso. Eu ainda estou querendo receber carta dos outros me ensinando as coisas. Agora, quem sou eu para ensinar a alguém alguma coisa?
Jorge Escosteguy: A Cláudia tem uma pergunta para você. Por favor.
Cláudia Boyago: Fernando, você disse que é difícil escrever sobre o que não sabe. O que vem primeiro para você, a vontade de se trancar para escrever um livro ou é uma boa idéia?
Fernando Sabino: Cláudia, outro dia me fizeram a seguinte pergunta: se você tivesse que começar de novo, você escolheria ser escritor? Falei “de jeito nenhum, escolheria ser músico de jazz”. O Ruy sabe disso. Já que podia escolher, não ia escolher bateria, escolhia piano, por exemplo, uma coisa assim, mas eu tenho que me conformar com a bateria. Aí eu contei essa história para a minha mulher, ela falou: “Mas, Fernando, você não escolheu ser escritor não, você foi escolhido”. Eu achei isso muito bom, muito bem observado, porque não é uma maldição, você nasce com um estigma, marcado para uma determinada tarefa que transcende as suas possibilidades. Então é a maneira de eu chegar ao limite de mim mesmo. E eu sou defasado com relação à realidade, eu sou um mentecapto, meu bem. Para poder atingir a normalidade eu tenho que escrever. Isso que me faz chegar ao nível dos meus semelhantes. É essa a atividade. Então é compulsivo escrever. Eu não sei o quê. Porque eu estou convencido de que o escritor que lida com a imaginação criadora, ao contrário do cientista, do professor, do ensaísta, ele escreve sobre aquilo que não sabe exatamente para ficar sabendo. Eu fico assim: “que diabo é isso que me atormenta?” Então eu tenho que escrever para saber o que é, inventar histórias, e tal.
Cláudia Boyago: E eu complicaria a pergunta perguntando quando você sentiu então que isso era uma coisa que falava mais alto para você?
Fernando Sabino: Quando eu comecei assim, você diz?
Cláudia Boyago: Isso.
Fernando Sabino: Quando eu era garoto, eu tinha, por exemplo, nove, oito anos, quando eu comecei a me entender por gente, a partir dos sete, oito anos, eu descobri que eu tinha uma vocação irresistível, incontrolável, extraordinária, arrasadora para a mentira. Eu mentia descaradamente, [risos] eu falava mentira para todo lado. Minha mãe me perguntava: “Aonde é que você foi?” Eu falava: “fui à praça”. “Fazer o quê?” Não tinha ido à praça, estava no quarto. Inventava mentira para todo lado, e não sei por que diabo eu tinha essa compulsão. Depois eu comecei a ambientar essas mentiras, sabe? Eu ia assistir um filme, por exemplo, ou lia um livro de aventuras assim de garoto, e começava a contar para os meus companheiros e inventava episódios que não tinha, mudava o enredo todo, enfiava personagens. Daí eu pensei que eu podia eu próprio começar a escrever as minhas próprias histórias, e foi assim que eu comecei, desviando essa mitomania para a literatura.
Jorge Escosteguy: Nós estamos a quase vinte minutos do programa. Quantas mentiras você já contou aqui para nós?
Fernando Sabino: Para mim, todas. [risos] Você sabe que eu não sou meu tipo, mas eu evidentemente não tenho mais nada mais a falar senão de mim mesmo, eu não sou especialista em nada, a não ser feito Jânio Quadros, especialista em idéias gerais. De modo que eu tenho que me conformar e falar de mim mesmo. De vez em quando me dá uma chateação tão grande que eu tenho vontade de mentir desvairadamente, mudar tudo, dizer que eu nasci em Pernambuco, dizer que eu vou escrever meu primeiro livro agora...
Marcos Faerman: Aliás, o García Márquez é conhecido como o maior mentiroso, ele adora mentir, cada entrevista que ele conta, ele já cabula, inventa coisas.
Jorge Escosteguy: De repente você disse em algum lugar que você nasceu em Juiz de Fora, por isso que a gente falou...
Fernando Sabino: É muito possível. Mas, você sabe por quê? Existe um poeta mineiro, poeta popular, um soldado, que tem um poema assim: “nasci em Guaxupé, no Sul de Minas, criei-me em Juiz de Fora entre a gentalha, amei tanto o bom como o canalha, abracei da mulher santa às messalinas”. É o meu caso. Eu servi no Exército em Juiz de Fora. Foi isso. Eu morri em Juiz de Fora.
Jorge Escosteguy: Caio Fernando Abreu.
Caio Fernando Abreu: Na minha modesta e às vezes confusa opinião, você é autor de um dos romances mais bonitos da literatura brasileira contemporânea, que é O encontro marcado.
Fernando Sabino: Com certeza eu recebi e estou recebendo elogios aqui, está muito bom isso. Eu pensei que ia ser massacrado. [risos] Todo mundo que eu falava: “Mas você vai no Roda Viva? Ih, você está perdido”.  “Mas o que eu fiz?” Que bom você falar isso.
Caio Fernando Abreu: Vou até falar um clichê que você já deve ter ouvido isso muitas vezes. Quando eu tinha 17, 18 anos, eu li O encontro marcado, e foi determinante para me tornar um escritor, eu acho que isso aconteceu com muita gente. Bom, e na seqüência eu acho que você publicou pouca ficção; se a gente pensar no O encontro marcado, depois tem O grande mentecapto, tem algumas novelas, alguns contos. Eu queria saber se o fato de você ter passado a escrever crônica para jornal dispersou um pouco o ficcionista Fernando Sabino.
Fernando Sabino: Olha, eu não sei. Antes de mais nada, eu quero te cumprimentar porque você teve realmente um destino muito mais brilhante do que o personagem do livro, porque ele não conseguiu se realizar como escritor e você conseguiu. Agora, o que acontece é o seguinte: eu gostaria de, evidentemente, guardadas as proporções, todo mundo que escreve no Brasil tem como modelo e como inspiração um exemplo que é o do Machado de Assis. E o Machado de Assis era um sujeito, você poderia dizer, pela numerosa obra de crônicas, de espaços, de matéria eventual reunida em livro, que é quase esmagadora em relação a quatro ou cinco romances importantes que ele escreveu, na realidade, três.
Caio Fernando Abreu: É verdade.

Fernando Sabino: Brás Cubas, Memórias póstumas e Dom Casmurro, que são os grandes livros dele, e os outros... Então eu estou me defendendo com ele. Quer dizer, eu acho que não, eu acho que de qualquer maneira eu tenho um livro de novelas, A vida real, depois tenho um livro, o romance O encontro marcado, O [grande] mentecapto, O menino no espelho e Faca de dois gumes. Quer dizer, já são cinco livros.
Caio Fernando Abreu: Você acha a crônica menor em relação à ficção?
Fernando Sabino: Necessariamente... Olha aqui, vamos plagiar o Mário de Andrade, e ele dizia que conto é tudo o que chamamos de conto, ou tudo o que o autor chama de conto. O que é crônica, afinal de contas, é uma coisa muito indefinida, porque a crônica vem, com o correr do tempo, essa condição dela ser decorrente de uma atividade jornalística, que foi se tornando literária ao tempo de Machado de Assis, depois veio se tornando social, ao tempo de Ibrahim Sued [(1924-1995), filho de imigrantes árabes, era colunista social, compositor e um dos jornalistas mais famosos da década de 70], de modo que a coisa vai ficando meio... A crônica política... Hoje nem se chama mais de crônica, chama-se de coluna, ou então, agora tem um novo termo para os comentaristas políticos, que são cientistas políticos.
Caio Fernando Abreu: Cientistas políticos, ou articulistas.
Fernando Sabino: Articulistas. Eu me lembro que quem começou com esse negócio de colunista foi o Samuel Wainer , porque nós trabalhávamos juntos no Última Hora, e ele fazia uma coluna, que era uma coluninha, chamava-se Por Detrás da Coluna, uma coisa assim, e ele botava: “Este colunista está seguramente informado”, e todos os jornais transcreviam dizendo: “Este comunista” [risos] porque ninguém sabia o que queria dizer aquilo. Eu acho que a crônica não é um gênero menor não, haja vista Rubem Braga, que é essencialmente cronista, nunca fez, fez um outro poema eventual, mas fez poemas em prosa maravilhosos a que ele chama de crônica, fez contos maravilhosos a que ele também chama de crônica. De modo que eu acho que é um gênero realmente... Uma vez, sabe... Eu posso contar um casinho aqui?
Jorge Escosteguy: Claro.
Fernando Sabino: O Guimarães Rosa me telefonou, perguntou: “O que você está fazendo?” Falei: “estou tentando escrever uma peça de teatro”. Ele disse assim: “Não faça biscoitos, faça pirâmides”. E eu fiquei massacrado. Falei: quer dizer que na literatura Jorge Luis Borges [(1899-1986), escritor, poeta, tradutor, crítico e ensaísta argentino, é considerado um dos mais importantes escritores da literatura mundial] ou você é biscoiteiro ou você é faraó, não tem jeito. E fiquei humilhadíssimo porque eu falei: minha obra é uma padaria. [risos] Eu faço pão toda noite para vender de manhã para o jornal. Aí, para encerrar esse caso, de repente eu fui salvo porque eu comecei a meditar e descobri que ao longo da literatura tem muitos biscoiteiros, a começar pelo Machado de Assis. Você quer maior biscoiteiro que?
Caio Fernando Abreu: Clarice Lispector [(1920-1977), ucraniana, naturalizada brasileira, jornalista e uma das escritoras mais intrigantes e ousadas da literatura brasileira moderna].
Fernando Sabino: Clarice Lispector. E toda essa obra às vezes massacrante, do próprio Rosa, que é uma pirâmide fabulosa, nem sempre é o necessário. Tem escritores menores que também... Manuel Bandeira [(1886-1968), poeta e cornista modernista, foi também crítico de arte, professor e pesquisador. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras].
Jorge Escosteguy: Sérgio Pinto de Almeida, por favor.
Sérgio Pinto de Almeida: Fernando, biscoiteiro ou faraó, não sei exatamente, e não vai nenhum tom negativo, claro, mas você carrega a sina de ser o autor de O encontro marcado. Você é o autor de O encontro marcado e outros. Você é apresentado como autor de O encontro marcado. O que houve na feitura do livro, no sucesso do livro? Houve uma superação sua, no sentido do “gol de placa” que você fez com a sua vida literária, ou você captou um sentimento que não tinha ainda sido traduzido numa obra literária?
Fernando Sabino: Não, eu diria que não captei um sentimento que não tinha porque não tenho essa pretensão, eu acho que a literatura é sempre a mesma ao longo dos tempos. Eu posso até te dar dois exemplos, e que são livros que de certa maneira eram protótipos do meu livro. Um é  A educação sentimental [escrito em 1869, o livro narra uma relação platônica entre um jovem e uma mulher mais idosa, que espelha o envolvimento de seu autor com madame Schlésinger], do Flaubert [Gustave Flaubert (1821-1880), escritor francês, mestre do romance realista], e outro, This side of Paradise [publicado em 1920], do [Francis] Scott Fitzgerald [(1896-1940), um dos maiores escritores americanos do século XX, fazia parte da chamada “geração perdida”, foi o autor mais bem pago de seu tempo]. Esses livros, que eu tinha por eles a mais rasgada admiração, ainda tenho, que me influenciaram muito na época, e que serviram muito de inspiração para O encontro marcado. Mas no [O] encontro marcado, sabe o que é, Sérgio? Não é mérito meu nem mérito do livro, é mérito da juventude que todo mundo tem, porque o livro coincide, esbarra, bate naquele momento da juventude em que você vai decidir, que você descobre que não é eterno nem genial. Há uma hora em que você descobre que você é apenas talentosinho.
Sérgio Pinto de Almeida: Você não mentiu no livro?
Fernando Sabino: Não, não. Eu procurei ser honesto e jogar tudo na mesa e não blefar. Agora, eu acho que esse é o papel do artista. Então, para encerrar o caso de O encontro marcado, ele corresponde a uma necessidade de expressão que todo jovem tem e não é só no Brasil não, e por isso que ele se mantém ao longo do tempo, porque o jovem é eterno, ele é sempre o mesmo. Tanto assim, que você vê que a referência que ele fez é sempre uma referência: “este livro, quando eu era jovem, quando era moço, quando estava começando, me influenciou muito”. É raro encontrar uma pessoa de mais de 40 anos que se interesse pelo livro, senão como reminiscência de si próprio, compreende?
Jorge Escosteguy: O Mário Viana tem uma pergunta. Por favor.
Mário Viana: Fernando, lendo os seus livros, seus relatos de viagem, a gente fica morrendo de vontade de viajar também. Eu lhe faço uma pergunta: você tem medo de avião?
Fernando Sabino: Não diga isso. Eu já tive muito medo de avião. E, olha, eu perdi o medo de avião porque eu fiz toda a campanha, eu fiz a cobertura da campanha de Juarez [Fernandes do Nascimento] Távora [(1898-1975), militar e político cearense, foi candidato à presidência da República em 1955 pela UDN] contra Juscelino Kubitscheck [(1902-1976), médico, militar e político brasileiro, conhecido como JK, foi presidente do Brasil entre 1956 e 1961, famoso pelo espírito desenvolvimentista cunhado na frase "cinquenta anos em cinco"] para o Diário Carioca, numa época que você talvez não era nem nascido, foi em 1955, e nessa época eu tinha tanto medo de avião que eu ia para a cabine do piloto para poder ver como é que era aquilo, porque nós viajávamos, nós visitamos 150 cidades em 120 dias. Agora, de repente eu descobri que eu tinha mais medo do Juarez do que de avião. [risos]
Ricardo Soares: Por quê?
Fernando Sabino: Porque ele era uma usina cívica. O Juarez era um homem de uma humildade, ele dava soco na mesa, dava soco no ar, dava soco em qualquer lugar. Olha, o Collor "é pinto" em matéria de dar soco no ar.  [risos]
Marcos Faerman: Você tem medo do Collor?
Fernando Sabino: Não. O que é isso? Eu tenho vergonha [risos]. Mas, voltando ao Juarez, você diria, por exemplo... Eu estava lendo [Fiódor] Dostoievski [(1821-1881), um dos maiores escritores da literatura russa]. Ele falou: “O que você está lendo?” - isso no avião - “Dostoievski”. “Mas o problema da Rússia naquela época do Dostoievski é muito diferente do nosso problema. Você vê, por exemplo, nós temos problemas aqui”. E começava a disparar a falar dos problemas. De repente eu mostrava uma paisagem bonita no avião, ele falava: “tem muito aluvião, o problema do aluvião aqui” [risos] Então eu fiquei com medo dele e perdi o medo de avião.
Jorge Escosteguy: Osmar, por favor.
Osmar Freitas: Basicamente são duas perguntas, mas eu vou tentar juntá-las. Primeiro a questão de crônica. Como eu tive a honra de dividir com você o mesmo espaço no O Estado de S. Paulo, de cronista, eu gostaria de saber o que há, você saiu das crônicas do Estado, o que há hoje em dia com as crônicas? Por que falta crônica no país? Por que os jornais não dão tanto espaço quanto davam antigamente? Aí vem embutida a outra pergunta: será que é porque o país está cada vez mais analfabeto?
Fernando Sabino: Não, são realmente duas perguntas que eu dou três respostas. Primeiro é essa, porque eu estou absolutamente sensibilizado porque eu só recebo elogio aqui. Ele diz que se sente honrado. Eu que me sinto honrado por ter sido substituído por você. Não vem com essa que não tem. Em matéria de "rasgar seda" eu sou melhor do que você. [risos] Deixa eu te falar. O negócio é o seguinte: eu acho que houve uma evolução muito grande no jornalismo, o jornalismo que era o veículo natural. O jornalismo de jornal, de revista, dos órgãos de comunicação. Primeiro com o advento do audiovisual, e, segundo, com o fato dos órgãos de imprensa terem se tornado mais órgãos de grandes empresas do que propriamente órgãos em si na divulgação de notícias e de fatos, de obras literárias e culturais. A crônica perdeu um pouco o lugar no jornalismo, essa que é a verdade, a crônica literária. Eu sinto que ela foi subjugada, ultrapassada por um fenômeno de nosso tempo que é terrível, e que eu gostaria que não existisse: é que hoje a comunicação se sobrepõe à expressão, comunica-se mais do que se exprime. E isso é dramático para todo mundo que trabalha com a imaginação criadora, como é o seu caso. Você sente que há uma pletora de comunicação do nada, do vazio, da repetição, da bobagem, do "blá, blá, blá". E isso [porque] é preciso encher espaço, é preciso faturar, é preciso não parar, e seria até necessário que houvesse de repente uma parada. Não se publica nada durante seis meses.
Marcos Faerman: O senhor propôs que uma vez por semana a TV saísse do ar.
Fernando Sabino: Eu acho mais, eu defendo a tese que a televisão deveria repetir o programa todo dia, como é em cinema.
Marcos Faerman: O Sílvio Santos repete o mesmo filme.
Fernando Sabino: Isso é verdade. No fundo ela não faz outra coisa, não é?
Ricardo Soares: Fernando, você nunca foi convidado para escrever para televisão, nunca te atraiu fazer novela, caso especial? Você despreza a televisão ou você gosta?
Fernando Sabino: Nunca fui convidado não, e parece que eles desconfiam da minha completa, total e definitiva incompetência. É outro ramo, é outro meio de que eu não tenho a menor noção. Eu só sirvo para comparecer a saunas feito esta aqui, acho extraordinária, acho fabulosa, me sinto honrado, gratificado...
Caio Fernando Abreu: Fernando, a propósito da pergunta do Ricardo, no último Festival de Cinema de Gramado havia dois filmes de textos seus, era O grande mentecapto e a Faca de dois gumes, e os dois excelentes, principalmente o Faca de dois gumes. Ninguém se interessou em filmar O encontro marcado?
Fernando Sabino: Muitos.
Caio Fernando Abreu: Por que não aconteceu no cinema até hoje?
Fernando Sabino: A quantidade de filmes que eu não fiz... Eu não fiz filmes com todos os grandes diretores brasileiros. [risos] Você não fala um que eu não tenha deixado de fazer um filme com ele.
Caio Fernando Abreu: Quem quis filmar O encontro marcado?
Fernando Sabino: O Eduardo Escorel [(1945-), diretor, produtor, roteirista, montador e ator paulistano], por exemplo, foi um que levou a sério, chegou até fazer o... Eu tenho a impressão que... O Glauber [Rocha (1939-1981), diretor, produtor, roteirista, montador, ator, cenografista, diretor de arte, figurinista e crítico baiano, ícone do Cinema Novo] quis fazer. Só O encontro marcado tem uns cinco ou seis. Mas o que foi mais longe foi o Eduardo Escorel. Chegou a começar a fazer o roteiro, chegou a montar uma produção.
Caio Fernando Abreu: Você chegou a vender os direitos para ele?
Fernando Sabino: Mas, primeiro, o que acontece com o cinema é que o sujeito sai com dez projetos para conseguir realizar um. Eu acho que o cineasta que consegue projetar um filme de longa metragem num circuito comercial já é um herói. O filme pode ser uma desgraça. Aqui no Brasil ainda estamos nesse nível.
Jorge Escosteguy: Agora, os escritores em geral não gostam do resultado das adaptações para o cinema. Você gostou das adaptações dos seus livros?
Fernando Sabino: Muito, e inclusive continuando a responder a pergunta dele, eu também acho os dois filmes excelentes, apenas cada um no seu gênero. Houve dois procedimentos. Eu aprendi com o Jorge Amado [(1912-2001), escritor brasileiro dos mais consagrados e traduzidos, cujas obras foram das mais adaptadas para a televisão] e com o Guimarães Rosa uma lição. Quando começaram a me pedir para fazer filmes de histórias minhas, ambos disseram mais ou menos isso, e eu concluí que você tem três posturas a assumir: ou negar, não aceita e está acabado; ou você entrar de cabeça, participar, fazer parte da produção, da elaboração do roteiro, do cenário, de tudo, da locação, dos personagens, de tudo, dos atores, tal, e até a promoção do filme na sua estréia; ou simplesmente tirar o melhor proveito econômico daquilo, pedir um bom pagamento pelos direitos autorias, pela cessão dos direitos autorais, e assistir pagando ingresso.
Jorge Escosteguy: Qual foi a sua opção?
Fernando Sabino: Essa minha opção foi a última, foi tirar o melhor possível daquilo que eles pudessem me pagar e ir assistir pagando ingresso. Mas ambos tiveram uma atitude muito correta e digna, porque isso era até meio parte do nosso acordo contratual, de que eu não me meteria, apenas gostaria de ver o resultado, o roteiro para aprovar, porque podia ter alguma coisa inconveniente para mim. Mas não tinha. Não só não tinha como eles foram extremamente decentes, inclusive muito generosos para com essa minha postura de só escritor. Submeteram o script às minhas opiniões. Eu dei opinião, fiz e aconteci.
Jorge Escosteguy: Pagaram os direitos?
Fernando Sabino: Pagaram direitinho. Há uma discrepância entre o que paga de sinal e o que depois você tenta arrecadar da Embrafilme. Aí é outra desgraça, outro papo...
Ricardo Soares: É uma novela.
Fernando Sabino: E a parte fixa vai, mas a parte variável... Tem uma parte fixa e tem uma parte variável. Só acabando a pergunta dele, o primeiro, que foi O grande mentecapto, teve uma fidelidade literal à obra original. E o segundo, ele declaradamente, por necessidade de co-produção, que é uma co-produção franco-brasileira. O Murilo Salles [(1950-), cineasta brasileiro, diretor de fotografia e roteirista de filmes]. O primeiro foi o Oswaldo Caldeira [(1943-), escritor e cineasta mineiro], admirável como diretor. O segundo já me preveniu que a minha história ia servir apenas de trampolim, ia ser meia hora de motivação para uma outra história. Ele até usou uma expressão muito feliz na minha opinião: “Vou transformar um drama psicológico num drama policial”. E foi o que ele fez.
Jorge Escosteguy: Cláudia, por favor.
Cláudia Boyago: Fernando, eu queria saber se você sente saudade de escrever para o jornal, e se tem alguma coisa que você gostaria de fazer ainda que você não fez.
Fernando Sabino: Em jornal?
Cláudia Boyago: Não, como escritor.
Fernando Sabino: Pensei que você ia falar como homem, aí eu não ia poder contar.
Cláudia Boyago: Como escritor, se você gostaria de ver alguma história sua de alguma forma?
Fernando Sabino: Do mundo de intenções, o meu inferno literário está cheio. Você não faz idéia. Para cada coisa que eu publico tem pelo menos dez que eu não publiquei. Você pode dar essa proporção, um décimo do que eu escrevo é o que eu publico, literalmente. Esse último livro que eu publiquei, que parece ao leitor mais apressado umas crônicas de viagem, De cabeça para baixo, mas na realidade eu levei quatro anos para fazer esse livro, note-se que a última viagem é de 86, levei três anos para fazer o livro, e fiz seis versões diferentes, 1400 páginas para apresentar 300. Quer dizer, às vezes eu penso que eu não sou escritor, inventaram que eu sou escritor, porque eu não tenho a menor facilidade de escrever. Agora, respondendo à pergunta do jornal que ele também fez, que estava embutida na pergunta dele, o que acontece comigo é que eu vivia na dependência de escrever toda semana – ele deve saber o que é isso – eu me sentia como uma cozinheira que acabou de fazer o jantar, servir o jantar, lava as panelas, guarda, e já tem que tirar tudo de novo para fazer o almoço. E não pára nunca isso. Então eu estava feito um cano furado, eu estava perdendo no cotidiano aquilo que podia ser aproveitado de maneira mais essencial. Disso dependia e depende a minha subsistência econômica. Eu levei um baque terrível parando de escrever porque mais da metade do que me sustenta vinha do jornal. Eu distribuía, fazia e acontecia e me exauria naquilo. Então de repente eu percebi que agora eu quero escrever o que eu quiser, e não o que o jornal espera que eu escreva, compreende?
Jorge Escosteguy: Ruy Castro, por favor.
Ruy Castro: Fernando, a maioria do que você escreve, principalmente as crônicas, é muito confessional, pelo menos você fez na primeira pessoa ou do singular ou do plural, quando você bota a Lygia [Lygia Marina de Moraes, foi casada com Fernando Sabino, musa inspiradora da música "Lígia" de Tom Jobim] nas histórias também. E são todas histórias muito engraçadas, suponho que aconteceram com você, se você não estiver mentindo, evidentemente. Então, quer dizer, pode-se concluir que a sua vida é uma grande crônica do Fernando Sabino?
Fernando Sabino: Talvez. É uma boa definição. Uma pequena crônica do Fernando Sabino, vamos ser mais modestos. Mas reportando à mentira, deixa eu fazer um reparo aqui, que inclusive está feito naquele meu livro Tabuleiro de damas, que se chama assim, para quem leu ou chegou a me ouvir falar nisso, porque eu já cansei de usar essa metáfora, é de que o tabuleiro de damas não é nem preto com quadrados brancos nem branco com quadrados pretos, ele é de outra cor com quadrados pretos e brancos. Esta outra cor é que simboliza o esforço do escritor em ir buscar uma verdade que se esconde além da realidade. Não é uma mentira. A realidade é que é mentira. Você vai buscar uma verdade que está só no sonho, que está na fantasia, que está na imaginação criadora. Essa verdade, às vezes, não bate com a realidade, essa verdade ultrapassa. E, às vezes, você tem que realmente inventar para descobri-la. Então não é propriamente uma mentira no sentido pejorativo, é uma liberdade poética, vamos dizer assim. Agora, voltando à crônica, se é aquilo que aconteceu ou o que poderia ter acontecido, e que se não aconteceu vai acontecer. É um pouco o prolongamento. Porque a vida da gente, Ruy, é uma espécie de projeção na imaginação de tudo o que você está pensando, existindo. Ele estava falando no cinema... Cada um tem o seu... Você pergunta: “O personagem equivale ao personagem que você imaginou, ele corresponde?” Falo “não, cada um que lê o livro projeta um filme na sua imaginação”. Então a gente está sempre vivendo na cabeça um filme, está projetando através da sua imaginação audiovisual uma história, um filme, uma coisa, e isso é a crônica que a gente escreve.
Ruy Castro: Pois é, mas pelo que eu conheço de você, eu acho que é verdade que você todo dia acha dinheiro na rua, como disse várias vezes.
Fernando Sabino: Agora não é vantagem mais. Agora, eu já achei dinheiro, depois que deixou de ser vantagem, eu achei uma libra em Londres da última vez que eu estive lá, há dois meses, uma libra, daquela douradinha, na rua, e achei lá no Canadá 25 cents, e o canadense é pão-duro para burro, ele não joga dinheiro fora não. E eu achei num momento em que estava precisando de 25 cents para pagar um pedágio, tinha que ser trocado, e eu não tinha. E eu então falei: “eu vou dar um jeito”. A Lygia estava desesperada, dirigindo. Tinha um funil para jogar moeda, e nós não tínhamos a moeda, e tinha uma fila de mais de 100 carros atrás de nós. Eu falei: “vou dar um jeito nisso”. Abri a porta, andei três passos e apanhei uma moeda no chão, falei: “está aqui a moeda”. Deus existe, viu.
Ricardo Soares: Fernando, a gente estava falando de cinema agora há pouco, e a pergunta do Caio e da adaptação dos seus filmes, você tem uma experiência atrás das câmeras como diretor na Bem-te-vi Filmes, quando você filmou um pouquinho da vida do Carlos Drummond de Andrade [(1902-1987), poeta mineiro ícone do Modernismo brasileiro], do Rubem Braga. Eu queria que você contasse essa passagem, e se isso auxiliou o escritor Fernando Sabino. Eu queria que você contasse.
Fernando Sabino: É verdade, eu tive essa experiência, e não só essa como outra também na área comercial. Há muito tempo que eu tinha experiência de fazer roteiros, fazer itinerários para cinema, para tipos de filme assim do Jean Manzon [francês naturalizado brasileiro, chegou ao Brasil em 1945, como fotógrafo da revista Paris-Match, e depois transferiu-se para O Cruzeiro, é também diretor de documentários, com mais de 900 curta-metragens para o cinema], de Rosemberg [referência a um dos dois cineastas brasileiros: Rosemberg Cariry e Luiz Rosemberg Filho], Carlos Niemeyer [(1920-1999), produtor brasileiro de cinema, proprietário do Canal 100 que revolucionou o jornalismo cinematográfico brasileiro], Canal 100 [programa de jornalismo cinematográfico que exaltava fatos e paisagens brasileiras com imagens sensacionais, principalmente sobre futebol, famoso nas décadas de 1960, 70 e início de 80, apresentado nas salas de cinema antes da exibição do filme principal]. Eu e Paulo Mendes Campos [(1922-1991), escritor e jornalista mineiro] ganhávamos a vida fazendo textos, e a gente tinha que falar assim: “olha, pior do que isso eu não sei fazer, você me desculpe, vê se você me ajuda”. Nós tínhamos uma lista de lugares-comuns para poder usar. Quando você assistir um filme desses assim daquele tempo, que diz assim: “Rasgando caminhos para o progresso”, fomos nós que fizemos, fui eu e o Paulinho. [risos] Então era uma companhia de “fazeção” de textos. Nós fazíamos juntos. Depois disso eu fiz com o Davi Neves [(1938-1994), cineasta brasileiro], a Bem-te-vi Filmes, e com o Mair Tavares [(1945-), diretor e montador cearense de peças para cinema e teatro], e nós fizemos não só uma série de dez escritores brasileiros contemporâneos, porque tinha vontade de preservar uma imagem do sujeito ao vivo, compreende? A gente imaginava assim que o Machado de Assis pudesse ser visto hoje conversando com a Carolina [mulher de Machado de Assis], indo para Academia [Brasileira de Letras], e andando em casa de suspensório e de chinelo... Enfim, fizemos dez escritores, que você sabe. Carlos Drummond [de Andrade], Erico Verissimo [(1905-1975), escritor gaúcho conhecido mundialmente por retratar magistralmente a maneira de ser, pensar e sentir do brasileiro do extremo sul. Entre sua vasta obra, destaca-se a triologia O tempo e o vento], Vinicius [de Moraes (1913-1980), poeta, compositor, intérprete e diplomata brasileiro], [Manuel] Bandeira, são dez. E fizemos uma série de filmes, documentários sobre a participação do Brasil em feiras internacionais só para pagar a nossa viagem.
Ricardo Soares: Que nota você se daria como diretor de cinema, Fernando?
Fernando Sabino: Perdão.
Ricardo Soares: Que nota você se daria como diretor de cinema?
Fernando Sabino: Olha aqui, eu não sei dirigir ator, e eu não sou câmera porque eu não sei piscar o olho direito, ou esquerdo, e todo visor de câmera fica do lado, eu tenho que tapar um olho com a mão. De modo que nem diretor porque ator profissional eu não saberia dirigir. Eu sou palpiteiro, sabe, e palpiteiro não tem nota nenhuma.
Jorge Escosteguy: Marcos Faerman.
Marcos Faerman: Em 57, Carlos Lacerda [Carlos Lacerda (1914-1977), jornalista e político brasileiro, foi fundador e proprietário do jornal Tribuna da Imprensa e ficou famoso como pivô do atentado que provocou o suicídio de Getúlio Vargas de quem era ferrenho opositor] escreveu uma crônica em sua homenagem, na qual disse que o senhor era o único brasileiro conhecido em 500 anos deste nosso Brasil que tinha devolvido um cartório para o governo. E ele fez essa homenagem assim num texto chamado O cartório ou a vida, e disse que Fernando Sabino devolveu ao governo o cartório do qual era titular, e esse é um gesto inédito na história da República..
Fernando Sabino: Como é que você sabe disso? Você nem era nascido também.
Marcos Faerman: Rato de arquivo de jornal. Então, como que é essa história do cartório do escritor? Porque o senhor ficou falando em dinheiro, dinheiro, mas parece que o senhor teve bastante dinheiro na mão e jogou pela janela, que era o cartório.
Fernando Sabino: Joguei pela janela não.
Marcos Faerman: Como é a história do cartório?
Fernando Sabino: É o seguinte, é que assim como eu hoje cheguei à conclusão de que eu não passaria dos 60 anos dependendo de escrever para jornal, eu cheguei à conclusão de que eu não passaria dos 30 dependendo de um cargo público, ainda mais de um cartório que me foi dado porque eu era casado com a filha do governador. Então eu não fiz nada por merecer. Quando eu me separei dela, eu não tinha mais razão de ter um cartório. [risos] Foi isso.
Sérgio Pinto de Almeida: Fernando, eu queria mudar do cartório e da vida literária. Você disse que tem vergonha do presidente recém-eleito. Eu queria saber como um intelectual hoje, um escritor, um pensador como você, vê o Brasil.
Caio Fernando Abreu: Só complementando, eu queria perguntar isso mesmo. Ele perguntou a você se você sentia medo do Fernando Collor, e você disse que não, que sentia vergonha. Eu também sinto muita vergonha. Eu queria saber a sua opinião sobre ele, como é que viu esses cinco anos que nós vamos ter que engolir, um cara que está dizendo que vai fechar o Ministério da Cultura.
Marcos Faerman: Mas que lê cinco livros por ano.
Mário Viana: Você sempre se disse um otimista. Dá para continuar sendo otimista com todo esse panorama?
Fernando Sabino: Eu sou otimista porque o otimista erra tanto quanto o pessimista, mas ele sofre muito menos, [risos] ele só sofre uma vez, e o outro sofre duas, sofre antes e depois. Respondendo à pergunta do Sérgio, o que eu acho é o seguinte. Eu parto do princípio de que o brasileiro precisa um pouco de perder esse vício, esse cacoete de transformar os políticos em líderes e esperar que eles desçam do céu como um “fuhrer”, para resolver os problemas, de mitificar os nossos líderes, de fazer deles salvadores da pátria. Eu acho que a democracia é um regime, a democracia que eu ambiciono, a social democracia, o regime federativo, o sufrágio universal, independência de poderes, liberdade de pensamento, essa coisa toda que nós sabemos perfeitamente, e com justiça social, isso é inerente ao sistema ideal que eu tenho como social democracia. Acho que então a instituição tem que ser consolidada de tal maneira que quem quer que seja, basta ser um homem de bem que chegue lá pelo voto, pelo sufrágio universal, há de cumprir o seu dever e dançar de acordo com a música. É esse o ideal. Eu faço uma rememoração rápida, posso cometer algum equívoco, mas pega um exemplo de democracia presidencialista, eu sou parlamentarista, eu acho que seria a solução para o Brasil como é para o resto do mundo, com exceção dos Estados Unidos. Então peguemos os Estados Unidos. Estados Unidos teve, depois da Guerra tinha... Durante a Guerra morre um grande estadista, reconhecidamente um grande estadista, que era o Roosevelt [Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) foi presidente dos Estados Unidos de 1933 a 1945, por quatro mandatos], e assume um político de segunda categoria, que era o Truman [Harry Salomon Truman (1884-1972), foi presidente dos Estados Unidos de 1945 a 1953.]. E esse homem ganhou a Guerra também. Foi o homem que teve a responsabilidade de soltar a bomba atômica. Depois disso, em vez do Stevenson [Adlai Stevenson (1900-1965), estadista e político norte-americano], que era um grande estadista a ser eleito, foi eleito o Eisenhower [Dwight David Eisenhower (1890-1969), foi presidente dos Estados Unidos entre 1953 e 1961 e comandante supremo das forças aliadas durante a Segunda Guerra Mundial], que pode ser um grande general, mas era um sargentão como político. No entanto teve dois mandatos e se saiu direitinho. E vai por aí afora uma fileira de homens medíocres: o Johnson [Lyndon Baines Johnson (1908-1973), assumiu o cargo de presidente dos Estados Unidos com o assassinato de John Kennedy, e governou de 1963 a 1969], o Ford [Gerald Rudolph Ford Junior (1913-2006), foi presidente dos Estados Unidos de 1974 a 1977], o Nixon [Richard Milhous Nixon (1913-1994), foi presidente dos Estados Unidos de 1969 a 1974], que não dançou de acordo com a música e “dançou”. E chegamos a esse cowboy chamado Reagan [Ronald Wilson Reagan (1911-2004), ex-ator que foi  presidente dos Estados Unidos de 1981 a 1989], que saiu direito. Tudo muito bem. Com isso eu quero dizer, sem dar por mérito esse pessoal, mas simplesmente reconhecendo que os regimes, que o sistema está acima das pessoas, que nós teríamos aqui possibilidade de vir amanhã a ter um regime consolidado através dessas instituições, que é a Constituição, que é o regime federativo, e tudo mais. Então, o que acontece? Só que você não transforma o Brasil numa Inglaterra ou numa Suíça da noite para o dia. Isso leva tempo. A cada passo que a gente está indo nós estamos conquistando terreno. Essas eleições foram muito boas, eu achei excelente. Não podia ser melhor. Não tem ninguém melhor. Quer dizer, o povo não escolheu ninguém melhor. Vamos reconhecer que o povo é que escolheu. Está certo? Com todos os erros. A próxima eleição vai ser melhor. O ano que vem nós vamos ter boas surpresas porque vai haver renovação do Congresso, vai haver uma oposição consolidada em torno de princípios mais ou menos efetivos, e que vão exercer esses princípios para coibir os desmandos do poder, compreende? Então tudo isso vai estar funcionando. É que nós estamos mergulhados muito dentro da lama para poder ver, ter perspectiva, mas qual o país da América Latina que chegou a esse ponto? Nós estamos melhores do que todos eles.


















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