sábado, 24 de novembro de 2012

ENTREVISTA FERNANDO SABINO

Nos últimos domingos o Outros 300 tem postado várias entrevistas ocorridas no programa Roda Viva da TV Cultura. Hoje, um dos grandes da literatura nacional, e grande ídolo meu, Fernando Sabino é o entrevistado. Ele falará, claro, sobre literatura, mas também sobre sociedade, política, vida, amores... Confira a segunda parte, pois é uma grande entrevista, vale a pena acompanhá-la.
 
Link da primeira parte da entrevista abaixo:
http://outros300.blogspot.com.br/2012/11/entrevista-fernando-sabino.html

25/12/1989
O escritor diz que, infelizmente, a crônica literária vem perdendo lugar no jornalismo, foi subjugada pela ditadura da comunicação que se sobrepõe à expressão da imaginação criadora.
 
[intervalo]
Jorge Escosteguy: Vou só fazer uma advertência aos telespectadores, que ninguém jogou água no Fernando, ele simplesmente estava suando e tirou o casaco no intervalo.
Fernando Sabino: Os telespectadores que tiverem a paciência de assistir a primeira parte, devem ter notado que começou o strip-tease [risos], a chamada “síndrome do homem nu”. Se tiver mais um segmento, eu acabo pelado, hein. [risos]
Jorge Escosteguy: Não, este é o último. Nós falávamos antes do intervalo sobre o novo presidente da República e você falou que tinha vergonha, não tinha medo, tinha vergonha. O Caio lembrou isso. Agora, esse cidadão foi eleito por mais de 30 milhões de brasileiros. Ou seja, fomos democraticamente às urnas, em dois turnos, deram-lhe 20 milhões de votos. Você tem vergonha do povo brasileiro?
Fernando Sabino: Não, vergonha do povo brasileiro, não. Vergonha de uma eleição que elege uma pessoa incompetente. Agora, como eu estava sustentando que nós não devemos buscar a mitificação dos nossos dirigentes e sim aceitá-los como pessoas normais e capazes de, com boas intenções, cumprir o seu papel, vamos esperar que ele cumpra o seu, e fiscalizado pela oposição.
Marcos Faerman: Qual é o político brasileiro, ao longo da sua trajetória, porque o senhor teve contato, por exemplo, com o Juarez Távora, que era aquele general de queixo austero, que dava socos na mesa, que tinha uma síndrome de general espartano, agora temos o outro que dá soco na mesa também, mas qual é o político brasileiro que o senhor, ao longo da sua trajetória, a figura que lhe parece a melhor?
Fernando Sabino: A diferença entre o Juarez Távora é que ele com justas razões dava soco na mesa, e este [referindo-se ao presidente de então, Fernando Collor de Mello] dá soco no ar, não dá soco em nada. Ao passo que eu acho que poderia ter sido uma grande experiência para o Brasil ter tido o Juarez Távora como presidente da República, porque era a grande oportunidade do Brasil digerir as suas Forças Armadas, que saísse na urina.
Jorge Escosteguy: Ter um general eleito?
Fernando Sabino: Um general eleito, um general mais democrata do que qualquer outro, mais civil do que qualquer outro, com teses absolutamente avançadas para o tempo; era um homem que defendia a reforma agrária, o municipalismo, a participação dos operários no lucro das empresas, e por aí vai, e com convicção absoluta, ninguém brincava em serviço com ele não. Mas eu te digo quem foi o grande político com quem eu tive a felicidade de conviver até pessoalmente, que foi o Milton [Soares] Campos [1900-1972), político, professor, jornalista e advogado brasileiro.]. Milton Campos foi realmente uma figura extraordinária de humanista e de político, mas ele era um cético. Quando ele foi eleito governador de Minas, eu me lembro que durante a campanha, dizia assim: “você sabe que eu estou com medo, quer dizer, “com medo” [reformulando], eu estou com esperança de ganhar”. E quando ele ganhou e eu fui visitá-lo, ele me disse assim: “Fernando, o bom é ser da oposição para poder falar mal do governo, eu estou louco para falar mal do meu governo e não posso porque o meu governo sou eu próprio”. Quer dizer, é até incompatível com o exercício do poder, com a dimensão extraordinária de homem público como tinha o Milton Campos. E, como eu volto a dizer, eu acho que a democracia é o regime dos homens meiões, dos homens médios, sem nada de extraordinário, que apenas cumpram o seu papel e o seu dever, já nos damos por muito satisfeitos.
Jorge Escosteguy: Mário Viana, por favor.
Mário Viana: Fernando, nos planos do novo presidente está a extinção do Ministério da Cultura. O que o senhor acha disso, vai prejudicar muito ou não?
Fernando Sabino: Olha, eu tenho a opinião pessoal, inclusive pode até se chocar com a dos meus confrades, meus amigos, até o José Aparecido de Oliveira [(1929-2007), foi ministro da Cultura de 1988 a 1990], que é um grande amigo meu, independente da atuação que ele tenha ou deixe de ter na política brasileira. Eu acho que quanto menos o Estado se meter com cultura é melhor. Essa é a minha tese, a minha posição. Eu acho que o Estado tem que criar condições para que a cultura floresça por si mesma, e não dirigi-la, orientá-la e capitalizá-la. Eu dou um exemplo. Toda vez que o Estado se meteu na indústria do livro, que é o meu campo particular, o campo literário, e até editor eu já fui, deu-se mal, e a literatura se deu muito mal. Então, o que é que o governo pode fazer? Pode melhorar a indústria do papel, e isso vai beneficiar a indústria do livro no Brasil, e a sua comercialização e o seu florescimento. Agora, meter-se a editar? Não. Então a cultura que cuide de si própria. Se o governo conseguir estabelecer um regime que seja democrático e com justiça social, ele está fazendo a cultura brasileira.
Jorge Escosteguy: Você, como editor, não fez co-edições com o INL, essas coisas?
Fernando Sabino: Não.
Jorge Escosteguy: A sua editora não deixava fazer?
Fernando Sabino: Co-edições com o governo?
Jorge Escosteguy: Com o INL, Instituto Nacional do Livro, etc?
Fernando Sabino: Não, nunca fiz não. Não fiz porque eles não aceitaram. Eu faria sim, por que não? Eu também sou brasileiro.
Sérgio Pinto de Almeida: Fernando, um dos seus maiores amigos, e faz parte do grupo mineiro, etc, é o Otto Lara Resende [(1922-1992), cronista, contista e jornalista mineiro], de quem se diz que é um escritor dos artigos do nosso companheiro, jornalista Roberto Marinho [(1904-2003), jornalista e empresário, presidente das Organizações Globo]. Se diz que ele quem escreve aqueles comentários.
Fernando Sabino: Quais artigos? Eu nunca soube que o Roberto Marinho escrevesse artigos.
Sérgio Pinto de Almeida: Assina pelo menos. Até a "Carta ao Companheiro Lula". Agora, por outro lado, o outro mineiro que também fez parte do grupo foi o Hélio Pellegrino, a meu ver, um excepcional intelectual, que era declaradamente militante do PT. Eu queria saber, juntando um pouco a política e tendo como pano de fundo esses encontros literários, havia ou há muita desavença? Você patrulhou, você cobrou do Otto Lara essa ajuda? Você, como é que ficou? O Otto Lara escreveu ou não escreveu esses comentários do nosso companheiro jornalista, Roberto Marinho?
Fernando Sabino: Jamais ele poderia fazer isso. Seria uma injustiça para com o Otto, ele mal consegue escrever os artigos dele e ainda vai escrever para os outros?
Sérgio Pinto de Almeida: De onde vem essa história?
Fernando Sabino: Jamais... Porque ele, o Otto, se ele estivesse aqui presente, em dois programas deste iam dizer que ele é que estava inspirando o programa, que ele é que estava orientando, que ele é que tinha sugerido essa pergunta para você, porque ele é muito influente, é muito insinuante, tem uma conversa, leva todo mundo na lábia, ele é irresistível. Inclusive ele leu esse último livro que eu publiquei, porque ele é personagem do livro, e fez notas tão implicantes, tão ranhetas... Ele fez questão de transcrever algumas. Notas assim, por exemplo, eu dizia, na minha viagem: “ai, meu Deus, que falta faz um dicionário”. Então ele bota uma notinha assim: “Realmente, talvez temendo excesso de peso, você viajou com muito pouca bagagem vocabular”. [risos] Ele é incrível, é irresistível, a ponto do Jânio Quadros, quando era presidente da República, mandar chamá-lo porque não o conhecia direito, mandou chamá-lo e falou assim: “Eu quero que você venha aqui”. “Fazer o quê, presidente?” “Bater papo, só bater papo, você vai ficar comigo aqui para bater papo”.
Sérgio Pinto de Almeida: O que ele faz afinal na Globo?
Fernando Sabino: Porque ele é irresistível. Então, o que quer que seja de lendário corre a respeito do Otto. Mas eu jamais acreditaria que o Otto seria capaz de escrever o que quer que seja para o Roberto Marinho. Primeiro, porque os dois são absolutamente incompatíveis, vivem feito cão e gato. O Roberto Marinho se suicidaria antes de pedir ao Otto que escrevesse alguma coisa para ele porque ele se consideraria diminuído, porque ele acha que é muito mais intelectual do que o Otto. Ele acha uma injustiça o Otto estar na Academia Brasileira de Letras porque ele é que devia estar. Isso eu imagino, ele nunca me falou não. Inclusive eu não tenho o menor convívio com o Roberto Marinho para estar falando isso aí, mas eu presumo que seja assim pelo lado que eu conheço do Otto. E o Otto foi durante muito tempo das Organizações Globo, mas foi funcionário das Organizações Globo. Agora, e ele não sai de lá, ele é o último a sair, fica batendo papo na rua, na esquina, em qualquer lugar. Então a presença do Otto é uma coisa assim que se insinua em tudo o que existe. Ele já foi demitido há muito tempo das Organizações Globo e ninguém acredita.
Marcos Faerman: Ninguém tem coragem de falar isso para ele?
Fernando Sabino: Ele foi demitido e depois o Roberto Marinho se arrependeu e chamou-o de volta e ele não quis. Inclusive o Otto é um homem que tem uma dignidade intelectual da maior bravura, e ele ficaria irritadíssimo se soubesse que jamais de longe se insinuou essa pergunta que você fez. Até ele vai ver essa parte deste programa, quando ele ouvir, e ele vai querer me matar, falar: “Você deveria ter voado nas barbas daquele sujeito”.
Marcos Faerman: Lá no começo dos anos 40, Fernando, o Paulo Mendes Campos, o Carlos Castelo Branco [(1920-1993), jornalista, contista e romancista piauiense], que é o belíssimo escritor de coisas políticas, o Otto Lara, o Hélio Pellegrino, vocês se encontram em Belo Horizonte. Como é que é Belo Horizonte lá no começo dos anos 40, quando vocês formam uma turma? Como era a turma de vocês, que lugares freqüentavam, como era esse mundinho de Belo Horizonte? E depois vocês vão para o Rio de Janeiro, como que é o Rio daquele período?
Fernando Sabino: Isso eu posso até fazer uma observação curiosa, inclusive respondendo a parte...
Marcos Faerman: Porque vocês têm um grau de afeto entre vocês. O Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, o Otto...
Fernando Sabino: É parte da pergunta do Sérgio, não é, Sérgio? Você falou no Otto. O Otto eu já disse o que é. O Otto é essa alma barroca, é um homem incapaz de dizer não, e que fica com complexo de culpa por causa disso, e ao mesmo tempo tem uma bravura, uma indignação por esse tipo de coisa. É muito engraçado, e a gente mexe muito com ele por causa disso. É uma criatura encantadora.
Sérgio Pinto de Almeida: O Hélio mexia com ele ou não?
Fernando Sabino: Muito. Mas o tempo todo. E nós todos passando trote, chateando. Ele é um pouco vítima de brincadeira, mas às vezes ele se indigna, dá uns repelões e nos bota no nosso lugar. Mas é um convívio que vem, que a única coisa que dignifica e dá força, dá grandeza a esse convívio, é que ele dura há mais de 50 anos, e é um convívio praticamente diário, inclusive com o Hélio que morreu, mas continua nos visitando, chateando, dizendo bobagem, isso é diário. Então o que faz com que isso seja um verdadeiro patrimônio afetivo, intelectual, moral, que eu levo na minha vida, é a amizade com essa gente. Isso é fundamental para mim e é definitivo. Agora, é um convívio, tirante essa duração ao longo do tempo, é o mesmo que você teve com os seus amigos, você tem e teve com os seus amigos, apenas a vida os dispersou - fatalmente isso acontece - e conosco não. Embora nós sejamos completamente distintos uns dos outros em matéria de personalidade, há um paixão comum que nos ligava, que é a literatura. E houve um fenômeno curioso, tirante o Hélio, que veio um pouco depois e que se tornou psicanalista para curar o seu próprio caso - porque ele era o principal cliente de si mesmo, que era poeta e foi jornalista - nós, Paulo, Otto, Castelo e eu, tínhamos como paixão a literatura, e nos sustentávamos através do jornalismo. Então Paulo e eu espontaneamente optamos para que o jornalismo não nos prejudicasse, de preferência só fazer matéria pessoal, assinada sempre, crônica, reportagem, e fugir do que quer que fosse de editorial, de cozinha de jornal, de diagramação, fugir da vida do jornal e manter o mínimo de qualidade literária que justificasse a gente assinar o nosso nome. Já o Otto e o Castelo preferiram outro caminho também para preservar a sua literatura, porque ambos eram escritores, contistas, romancistas e tal, fazer só jornalismo impessoal, fazer editoriais, diagramar primeira página, orientar, ser editor-chefe, enfim, trabalhar no jornal e preservar a sua literatura. Eu não sei quem deu certo, quem não deu. Agora, acontece um fenômeno curioso. Reconhecidamente o Carlos Castelo Branco como o Otto Lara Resende, dois dos maiores jornalistas brasileiros...
Sérgio Pinto de Almeida: Que escrevem muito bem.
Fernando Sabino: Todos os dois estão na academia. Isso é que é engraçado, eles é que se tornaram acadêmicos.
Sérgio Pinto de Almeida: O [José] Sarney [(1930-), político maranhense, tornou-se presidente do Brasil em 1985, após a morte de Tancredo Neves, de quem era candidato a vice-presidente] também está.
Fernando Sabino: Mas eu estou falando de nós quatro.
Ricardo Soares: E qual é a sua opinião sobre a Academia Brasileira de Letras, hein, Fernando?
Fernando Sabino: Olha, eu já disse e repito que eu jamais entraria para um lugar que você sai em posição horizontal. [risos]
Fernando Sabino: Eu não tenho condição de estar... Saber que eu não posso sair... Não adianta.
Jorge Escosteguy: Você mencionou o José Sarney. Você leu Os marimbondos de fogo [livro de autoria de José Sarney] ou não?
Fernando Sabino: Não, não tive o prazer, procurei em todas as livrarias, mas não encontrei, e ele não me mandou, de modo que eu não tive esse prazer.
Mário Viana: Fernando, hoje em dia fazer vídeo é uma senha para se arrumar namorada. Antigamente ser escritor tinha um charme especial, vocês eram muito namoradores, a gangue dos mineiros, dos quatro mineiros?
Fernando Sabino: Aonde é que você quer chegar com isso, hein?
Mário Viana: Nos anos 40 a 50.
Fernando Sabino: Como é o negócio?
Mário Viana: Era uma senha para se arrumar namorada? Tinha um certo charme?
Fernando Sabino: Do quê? Escrever? Não. Isso até afastava. Olha aqui, eu tenho uma grande admiração, conforme sabe o meu querido amigo Ruy Castro, por um saxofonista chamado Lester Young. E Lester Young começou como baterista. E preveniu aos bateristas, inclusive a mim, porque ele trocou a bateria pelo saxofone porque a bateria levava muito tempo para desmontar, e quando acabava de desmontar, as mulheres todas tinham ido embora com os outros músicos. [risos] E literatura era a mesma coisa. Quando a gente parava de fazer literatura, as meninas já tinham ido com outros caras.
Ricardo Soares: Mas você era um nadador.
Fernando Sabino: A literatura nunca me deu nada não.
Ricardo Soares: E o nadador? Você confessa em suas crônicas que você é um campeão olímpico...
Fernando Sabino: Também está dentro da síndrome de Lester Young. Também, enquanto está lá dentro da piscina, está outro cara com a sua namorada lá fora... Não dá certo.
Jorge Escosteguy: E a sua preferência por bateria. Você, antes do programa, estava comentando com o Ruy que andou dando alguns shows pela noite de São Paulo como baterista. Como é que é isso?
Fernando Sabino: Depois do quinto uísque, eu toco qualquer negócio. Mas acontece que o quê está mais acessível é a bateria.
Jorge Escosteguy: Por que essa sua paixão pela bateria? Você estudou? Você tem uma bateria em casa?
Fernando Sabino: Não, a única lembrança que eu tenho é que quando eu era escoteiro, eu gostava de tocar tarol, eu era da banda de tambores. E depois eu comprei uma bateria, quando eu tinha uns quinze anos, e essa bateria me acompanhou durante uns dez anos. E meu pai ficava alucinado, falava: “Meu filho, às três horas da madrugada não, não é possível”. Então eu levei a bateria depois que eu me casei, levei ela para o Rio comigo, mas um dia, quando eu fui a Los Angeles pela primeira vez, eu conheci um brasileiro numa roda, que estava contando: “ah, você gosta de bateria? Pois eu morava no Rio de Janeiro num apartamento que tinha um sujeito que tocava bateria, esse sujeito era tão diabólico que eu me mudei do Brasil por causa dele”. Falei: “onde é que você morava?” E ele aí deu o meu endereço. [risos]
Jorge Escosteguy: Ele morava no seu prédio.
Fernando Sabino: Eu fiquei firme. Quando voltei para cá, para o Brasil, eu dei a minha bateria para o Dom Helder Câmara [(1909-1999), arcebispo emérito de Olinda e Recife], não para ele tocar, evidentemente... [risos]
Ricardo Soares: Por que a bateria para o Dom Helder?
Fernando Sabino: Não para ele tocar não. Dei para a Feira da Providência [feira que acontece desde 1960 na cidade do Rio de Janeiro, onde ocorre a venda de diversos tipos de produtos, tais como utilidades domésticas, alimentos, artesanato, etc]. [risos]
Fernando Sabino: Eu tenho a impressão de que ele achou que fosse bateria de cozinha. Eu liguei para ele e falei: “eu tenho uma bateria, o senhor aceita?” Ele disse: “Aceito”.
Jorge Escosteguy: Você não tem bateria, você não ensaia, não estuda, não toca nada?
Fernando Sabino: Não, mas toco em qualquer lugar, de cabeça.
Caio Fernando Abreu: Fernando, você já fez várias referências à música, você adora música. E você tem uma filha que é uma excelente cantora, a Verônica Sabino, uma cantora ótima. Você interferiu no destino da Verônica como cantora?
Fernando Sabino: Fazendo-a, fazendo-a. [risos]
Caio Fernando Abreu: Além de fazê-la. Fazer a cabeça dela?
Fernando Sabino: Como diria o Lula, foi um ato de amor. [risos]
Caio Fernando Abreu: E fazendo a cabeça dela também?
Fernando Sabino: Não, não. A única coisa que nós tivemos foi que quando ela, desde menina ela cantava, e ela fez um grupo, um grupo de músicos jovens, muito jovens, mas todos muito sérios, basta dizer que tinha três maestros. Aí ela fez um conjunto que se chamava... Falei: “minha filha, como é que chama mesmo esse conjunto seu?” Ela falou: “chama Desbundeto” Eu falei: “então não dá, eu ia te ajudar, mas com esse nome não é possível”. Falou: “Por que não é possível?” Falei: “porque ninguém vai levar a sério um conjunto musical chamado ‘Desbundeto’”. “Ah, papai, você que não sabe, tem nomes muito piores”. Falei: “mas esse não vai”. Aí ela chegou e me disse: “olha, nós vamos mudar o nome do conjunto para nos profissionalizarmos, você tem alguma sugestão?” Falei “tenho”. Falei assim: “Acalanto”. Ela falou: “Ah, que é isso? Acalanto, que coisa mais feia”... “Feia? Uma palavra linda”. Aí ela foi, voltou, falou: “Olha, nós discutimos, fizemos uma votação e conseguimos um título que você vai gostar”. Falei: “como é que é?” Ela falou: “Céu da Boca”. “Ah, Céu da Boca... tem algum dentista aí, não?” Aí ela disse assim: “mas por quê?” Falei: “por que você não põe logo Peito do pé, Barriga da perna. Céu da Boca... Por que Céu da Boca?” – “Porque é uma coisa celestial e não sai da boca”. Falei: “ah, está certo”. Aí eu disse assim: “dá um abraço para os seus coregas” [risos] Corega é um pó que você põe na chapa [prótese dentária]... Mas Céu da Boca ficou sendo, e foi um grande sucesso, absolutamente admirável. Aí eu passei a sofrer do mesmo problema que o Sérgio Buarque de Holanda [(1902-1982), jornalista, sociólogo, historiador, e pai do cantor e compositor Chico Buarque de Holanda], porque ele passou a ser o pai do Chico, e eu passei a ser o pai da Verônica.
Jorge Escosteguy: Ruy Castro, por favor.
Ruy Castro: Eu queria dar um depoimento, Fernando Sabino, você vai desmentir por modéstia, a respeito da grande contribuição dele à música internacional, de certa maneira. Foi um episódio que aconteceu em novembro de 62, em que o Tom Jobim [(1927-1994), compositor, maestro, pianista, cantor e arranjador carioca, é considerado um dos maiores expoentes da música brasileira e um dos criadores do movimento da bossa nova - ver entrevista Roda Viva com Tom Jobim], junto com outros brasileiros, ia embarcar para Nova Iorque para tocar no concerto do Carnegie Hall [ocasião em que a bossa nova foi apresentada oficialmente aos norte-americanos]. E o Tom Jobim tinha 36 anos, e praticamente nunca tinha saído do Brasil na vida, devia ter andado de avião uma ou duas vezes, se tanto, simplesmente, na última hora de embarcar, em casa, decidiu que não ia, simplesmente. E o Fernando Sabino foi visitá-lo para se despedir dele. O Tom disse que não ia, que o avião ia cair, etc e tal, e o Fernando Sabino obrigou ele a fazer a mala e o botou dentro do avião. E no Carnegie Hall, o Tom Jobim foi o maior sucesso internacional...
Fernando Sabino: Foi verdade.
Ruy Castro: E o mundo deve, de certa maneira, ao Fernando Sabino o Tom Jobim...
Fernando Sabino: Pelo menos o Tom. O mundo eu não sei. Mas o Tom, inclusive eu me lembro que três vezes ele foi... Era um táxi que estava esperando para levar no aeroporto. Tirava a mala do táxi e botava, falava: “Esse avião vai cair”. Eu falei assim: “este avião não vai cair”. Ele falou assim: “Você jura?” Falei: “juro”. “Você jura que não vai cair?” Falei: “juro”. “Eu posso ir?” “Pode”. Aí ele entrava no táxi e tornava a sair. E eu me lembro que eu fui mais longe. Falei: “Tom, você vai ser o “golden boy” do Brasil, você vai ser o homem querido da América, você vai cantar com Frank Sinatra [(1915-1998), cantor e ator norte-americano, considerado um dos maiores intérpretes da música no século XX]”. Eu previ isso tudo e deu tudo certo. “Você vai tomar o mundo de assalto com a sua ida lá”. Ele falou: “Mas e esse pessoal que já foi?” Falei: “mas esse pessoal já foi, você não tem nada com isso”. E ele foi. E até hoje ele se lembra disso. Mas é evidente que ele deve a ele próprio, não a mim, lógico.
Marcos Faerman: Agora, você deu uma entrevista uma vez falando sobre bateria e sobre mentira, em que você disse que era pequenininho e a sua irmã tocava piano...
Fernando Sabino: É verdade, tinha me esquecido disso.
Marcos Faerman: E você ficava...
Fernando Sabino: Isso é verdade. Eu era menino mesmo. Inclusive eu batia naquele lugarzinho, naquela tabuinha de segurar música, e o piano ficou todo marcadinho ali. O meu pai tocava piano também, e eu acompanhava tamborilando.
Marcos Faerman: Falando em pai, eu fiquei muito comovido, porque eu acho que pai é uma coisa maravilhosa, e você...
Fernando Sabino: Pai só tem um.
Marcos Faerman: Você muitas vezes fez referência à sua família, que era uma família em que havia...
Fernando Sabino: Que bom você falar isso, porque eu gostaria demais, e hoje eu vim pensando nisso, que uma coisa que eu gostaria...
Marcos Faerman: Porque era uma coisa muito amorosa a sua família.
Fernando Sabino: Eu falei que eu gostaria muito que me dessem alguma oportunidade de falar no meu pai, porque é uma coisa tão grata para mim, foi tão bom, eu agradeço você ter se lembrado disso. Porque o meu pai era um homem modesto não só de posses como de cultura também, era um homem muito modesto mesmo, mas ele tinha uma espécie de sabedoria doméstica, vamos dizer assim, que era um filósofo doméstico, a tal ponto aquilo chegou que começou pessoas a irem procurá-lo para pedir conselhos. Ora um sujeito que deu desfalque, ora um outro que queria se suicidar, o outro que se separou da mulher, o próprio governador Benedito Valadares [(1892-1973), político mineiro, governou o estado de Minas Gerais de 1933 a 1945], sem o conhecer, sem nada, mandou o oficial de gabinete dele lá em casa mais de uma vez para pedir um conselho, uma orientação. O meu pai tinha um escritorinho no porão, e aquilo virou uma romaria. Entravam e saíam pessoas que ele não sabia quem era para pedir uma sugestão, e tal. E ele tinha uma espécie de sabedoria familiar muito boa. Eu me lembro de coisas que ele dizia assim, por exemplo, quando ele me via muito nervoso, falava: “Meu filho, as coisas são como são e não como deviam ser; perfeito só Deus, e esse mesmo, olhe lá. Mais de 50% já está muito bom. Agora, se você chegar a 80% de perfeição, já está fantástico, de modo que já está muito bom assim como está”. E dizia: “No fim dá tudo certo; se não deu é porque ainda não chegou no fim”. E a base desse tipo de filosofia de vida, eu fui recolhendo assim, umas inspiradas por ele e outras que ele diria. A última que me veio... A penúltima foi de minha mulher, Lygia, que de repente disse um dia assim: “Você quer saber de uma coisa? Para começo de conversa, nada tira o meu bom humor, está bom?” Então ele adotou isso como lema, e eu também. Então quando tem que enfrentar uma situação chata, difícil, alguém que pode me tocar fundo, eu falo: “olha, vamos partir do princípio de que você não vai tirar o meu bom humor”. Mas eu fui muito além disso, porque há pouco tempo eu fui entrevistado por uma moça e ela me perguntou: “Você é sempre assim? Você é uma pessoa descontraída e alegre?” Eu disse: “eu não sou alegre, não. De vez em quando, como a minha cozinheira dizia, eu falava: “você fica rindo” - era uma crioula gorda – satisfeita, né”. Ela falava: “Eu? Quando acabar de servir a janta, eu vou lá para o quarto abrir o bocão”.
Ricardo Soares: Mas tem alguma situação específica?
Fernando Sabino: Mas a última que eu aprendi realmente, essa eu quero levar até o túmulo, e foi uma moça que falou, e é verdade, “é preciso que a gente não perca a capacidade de rir da gente mesmo”. Isso eu acho extraordinário, eu quero não perder a capacidade de rir de mim mesmo.
Jorge Escosteguy: Cláudia.
Cláudia Boyago: Fernando, eu queria que você contasse para a gente qual é a coisa da sua vida que te dá mais prazer. E você disse que perdeu o medo de avião. Você ainda tem algum medo?
Fernando Sabino: Medo?
Cláudia Boyago: De alguma coisa.
Fernando Sabino: Todos. Eu não posso assistir filme de terror de noite porque eu fico apavorado, eu fecho a porta, rezo. Tenho medo de barata, tenho medo de tudo, mas principalmente de coisas sobrenaturais. Eu invoco Deus toda hora. Porque o demônio existe. Você sabe disso, ou não?
Cláudia Boyago: Acho que sim.
Fernando Sabino: Está bom. Eu sou sujeito a todos os medos. Agora, esses medinhos assim de avião, essas bobagens eu já superei, porque, como eu te disse, eu sou meio mentecapto, eu estou um pouco acima desses medos. Eu atravesso a rua em sinal fechado. Eu já fui assaltado por um sujeito que me chegou um revólver na nuca, e eu comecei a rir. E a minha mulher ficou enlouquecida, ela abriu a porta e foi parar a cinco metros. Estava dentro de um carro. E eu comecei a achar graça naquilo, mas uma graça de maluco.
Ricardo Soares: Fernando, falando em mentecapto, o Geraldo Viramundo [personagem principal de O grande mentecapto] é a mais completa tradução do seu bom humor. E quem é Geraldo Viramundo? É uma mistura de uma série de personagens?
Fernando Sabino: É uma mistura de uma série de personagens sim e que tem condimento de todo mundo. Tem desde Dom Quixote [referência ao personagem principal do livro El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, de 1605, do escritor espanhol Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616), um dos livros mais famosos da história, cujos personagens principais, um cavaleiro andante que vivia num mundo de sonhos e seu fiel escudeiro - Sancho Pança - caminhando à procura de aventuras, defendendo donzelas e atacando inimigos imaginários, "fazem parte da memória da humanidade", como disse Jorge Luis Borges] , a Chaplin [(1889-1977), famoso ator, diretor e produtor do início do cinema hollywoodiano, criador do personagem conhecido como Carlitos no Brasil], a Hamlet [referência ao famoso personagem da peça de William Shakespeare: A tragédia de Hamlet, príncipe da dinamarca].
Ricardo Soares: Deve ter muito amigo teu no meio.
Fernando Sabino: Tem, tem Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende, Vinicius de Moraes, tem Jayme Ovalle. Um tipo popular que tinha em Belo Horizonte, chamado Geraldo Boi, que foi mais ou menos o protótipo, o arquétipo, vamos dizer assim, desse personagem, que era um seminarista, e que nós convivíamos muito com ele. E eu, principalmente, porque eu sou, realmente foi a maneira que eu tive de suplantar o doido que tenho dentro de mim, foi escrevendo esse livro. Eu acho que eu me curei bastante, melhorei pelo menos.
Jorge Escosteguy: Osmar, a sua pergunta, por favor.
Osmar Freitas: A respeito, exatamente sobre isso. Você citou uma série de escritores, duas gerações praticamente de escritores. Então Minas deu na década de 40 uma série de escritores, década de 50, década de 60, até década de 70, ainda tem aqui grupos inteiros que foram para o Rio de Janeiro, vieram para São Paulo, permaneceram em Minas, fizeram contos, fizeram livros, tal, mas na década de 80 de repente desapareceu isso. O que está acontecendo com Minas Gerais hoje?
Fernando Sabino: Eu acho que não é com Minas Gerais não, é com o mundo. Eu acho que, como em Minas Gerais, acontece na Inglaterra também, que você podia na década de 50, 60, até por ali... De repente o mundo mudou muito. Houve um momento, houve um dia, eu tenho a impressão de que foi um dia assim, 4 de abril de 1963: você abriu a janela e o mundo tinha mudado. O advento de várias coisas. Por exemplo, começou com o Vigésimo Congresso, ainda em 55.
Osmar Freitas: Seis.
Fernando Sabino: Depois teve o Conselho Ecumênico, 63... De repente vieram os Beatles [banda de rock formada com quatro integrantes: John Lennon (guitarra e vocal), Paul McCartney (baixo e vocal), George Harrison (guitarra e vocal) e Ringo Starr (bateria e vocal) em Liverpool, Inglaterra, na década de 1960. Fez muito sucesso e é referência musical no mundo todo até hoje], de repente veio um outro conceito de arte, morreram os monstros sagrados. Quer dizer, para cada monstro sagrado da pintura, um Picasso [um dos mais famosos pintores do século XX] que morreu, surgiram milhares de pequenos grandes artistas, surgiram milhares de contistas. Depois daquela grande geração de grandes escritores americanos surgiu uma proliferação de pequenos grandes escritores. Isso aconteceu na música, aconteceu em tudo. A música, talvez um pouco menos, porque é menos verbal...
Marcos Faerman: Você está sendo pessimista agora.
Fernando Sabino: Não, pessimista não. Eu estou dizendo que há um novo conceito de arte. Inclusive a literatura deixou de existir como uma atividade sagrada. A sacralização... A dessacralização da literatura se deu nesse período desses últimos 20 anos de uma maneira total. Eu tive com o Octavio Paz [(1914-1998), escritor e diplomata mexicano] um encontro, porque eu fui fazer uma reportagem com ele há coisa de uns 10 anos atrás na casa dele, no México, e começamos a conversar sobre literatura. Ele ia me atender 15 minutos, e ficamos quase três horas batendo papo, porque nós falávamos nomes e ríamos. “Você se lembra?” Ele disse: “De quem?” “De José Sales, Luis Felipe?” “Lembro” “Você se lembra de fulano?” E Maritain [Jacques Maritain (1882-1973), filósofo francês de orientação católica] e não sei mais quem... Só dos franceses, depois passamos para os ingleses. E de repente nós começamos a rir porque descobrimos que nós parecíamos dois meninos trocando figurinhas. “Você tem essa aqui?” “Não, essa eu não tenho”. E de repente percebemos que nós éramos dois seres de uma raça, últimos remanescentes de uma raça em extinção, que é o homem de letras, um sujeito que pretende viver num mundo quase alienado, que é o mundo da literatura. Era o nosso mundo. Hoje a coisa melhorou muito, aumentou muito com o advento dos novos meios de comunicação. Mas está acontecendo aqui. Isso sim que eu sou pessimista. Aquilo que eu disse, por enquanto a comunicação está superando a expressão. Está se comunicando muito mais. Para você ter uma ideiazinha, tira um milhão de exemplares. Antigamente você tinha que trabalhar na pedra para fazer um soneto.
Osmar Freitas: E há uma tendência para se reverter, há uma maneira de se reverter esse quadro?
Fernando Sabino: Não, há de evoluir. Eu acho que isso é um processo evolutivo, sempre para melhor, inclusive porque tem que atender o mundo. Porque houve uma integração de grandes e grandes massas populacionais no mundo inteiro. Antigamente a África era só para filme de Tarzan. No Brasil, o nordestino era para morrer de sede lá. Esse negócio de Lampião...[o mais famoso cangaceiro nordestino] Não tinha negócio de Marimbondo de fogo não. Era só para eles ficarem por lá mesmo. “Padim Ciço” [padre Cícero Romão Batista, cultuado como santo no Nordeste], aquelas coisas, sabe? E hoje não, hoje estão integrados. Na África estão integrados. E a Índia? E a China? Então o mundo não podia ficar na base de você ficar fazendo sonetos para distribuir para meia dúzia de amigos. Então você tem que, queira ou não, participar desse mundo, se integrar nesse mundo, aceitar como ele é e criar uma arte nova, seja qual for. Eu acho que eu sou remanescente de uma espécie em extinção. Eu me sinto um antropóide.
Ruy Castro: Fernando, por que é quase inevitável que te façam pergunta sobre mineiros e você é carioca há mais de 40 anos?
Fernando Sabino: Há duas coisas. Primeiro que Minas está onde sempre esteve. Eu levo Minas comigo onde eu estou, Minas está aqui nesta cadeira. Agora, segundo, se existe alguma coisa que consiste em ser mineiro vem a ser não se tocar nesse assunto.
Ruy Castro: Exatamente.
Jorge Escosteguy: E o contista mineiro? O famoso contista mineiro? O contista do quintal, da casa? A geração de contistas?
Fernando Sabino: É, houve uma geração. É até o que nós estávamos falando, ele estava dizendo exatamente isso, que houve uma geração, uma florescência, um florescimento de contistas mineiros, e isso por uma época, uma moda, porque há realmente grandes talentos, poucos talvez tenham continuado.
Marcos Faerman: Tem um pouco nessa geração, aliás, antes dessa geração, o Ivan Ângelo [(1936-), escritor e jornalista mineiro].
Fernando Sabino: Pois é, o Ivan Ângelo. Mas esse não era propriamente contista, é um grande romancista. Esse é um grande romancista. Agora, eu digo mais, eu gostaria até de aproveitar a oportunidade para fazer uma menção a alguém que está - um dia vão lhe fazer justiça como um dos maiores escritores do nosso tempo. Esse é um romancista mineiro, que se chama Oswaldo França Júnior [1936-1989], que faleceu o ano passado. Publicou agora um livro admirável, um livro póstumo. Eu dou o meu depoimento sobre ele porque eu assisti o nascimento desse homem como escritor. Eu não fui o parteiro, mas eu  fui o curioso. O parteiro foi o Rubem Braga, que fez com que ele começasse a escrever romance. Ele apareceu, como vocês conhecem a história dele, ele era um aviador que foi cassado e resolveu ganhar dinheiro escrevendo, tinham dito que a gente ganhava muito dinheiro escrevendo, e ele levou para o Rubem Braga uns contos. O Rubem falou: “estão bons, mas o que dá dinheiro é romance, conto não dá dinheiro”. Então ele escreveu um romance chamado O viúvo, que é admirável. A partir daí ele veio fazendo uma obra absolutamente admirável, de uma coerência, de uma consistência, de uma força extraordinária que ainda vai marcar época na nossa literatura. Oswaldo França Júnior. Inclusive com um detalhe curioso, tem um livro dele, que talvez seja o melhor, que ele não publicou porque ele mandou para a nossa editora e eu devolvi pedindo a ele que melhorasse um pouquinho, fizesse uma "copidescada", e esse livro nunca foi... Talvez o melhor livro dele. Um dia ainda vamos encontrar no meio dos livros dele, e será um grande romance póstumo.
Sérgio Pinto de Almeida: Fernando, você não acha que, ainda falando em literatura, existe por parte da crítica, da imprensa, até dos leitores, e dos escritores, principalmente, um certo bom-mocismo, no sentido de que não se bate, não se briga, não se discute intelectualmente obras menores, e escritores menores, que acabam sendo perpetuados como grandes escritores, ou com alguma importância, contemporâneos, e que, a meu ver, são muito fracos, muito frágeis se comparados com outros escritores. Então esse bom-mocismo, essa aceitação por parte da crítica, leitores, escritores, imprensa, etc, acaba absorvendo para a história literária do Brasil obras menores.
Fernando Sabino: Eu acho perfeito. Mas eu acho que o motivo disso, talvez se você fosse mais longe, você ia chegar ao motivo disso, é que a crítica acabou. A crítica eclética, a crítica exercida com criatividade literária deixou de existir e foi substituída pela crítica universitária, vamos dizer assim.
Ricardo Soares: Resenha...
Fernando Sabino: A dissecação do livro como se disseca um cadáver. Quer dizer, você apresenta aos alunos, você não incentiva o aluno a ler o livro, você incentiva o aluno a interpretar o livro, e não curtir o livro. E isso deu para suprir essa ausência da crítica especializada, crítica literária, criativa, que tinha no meu tempo, quando eu comecei a escrever – eu cito nomes, Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Morais Neto [(1904-1977), também conhecido pelo pseudônimo de Pedro Dantas, com o qual assinou crônicas esportivas, foi jornalista, crítico, jurista, cronista, poeta e professor], Álvaro Lins [(1912-1975), professor, jornalista, crítico literário, ensaísta e diplomata pernambucano], Tristão de Ataíde [(1893-1983), pseudônimo de Alceu Amoroso Lima, crítico literário, professor, pensador, escritor e líder católico] e outros, Olívio Montenegro [escritor, crítico e tradutor brasileiro], são críticos que... Em todas as capitais do Brasil tinha um grande crítico literário. Hoje eles sumiram e foram substituídos pelos resenhistas. Agora, o resenhista tem o seu lugar no jornalismo, mas desde que ele tenha o mínimo de competência. E hoje: “Quem é que quer fazer resenha desse livro aqui? Faz você.” Entrou um estagiário egresso de uma faculdade de jornalismo, e vai fazer a resenha de uma grande obra literária, um livro de poesia. Quer dizer, não tem o menor sentido isso. Quando não é um release da própria editora que sai nos jornais. Então isso virou também um excesso de comunicação sem nenhuma expressão. É a isso que eu me refiro quando digo que está se comunicando mais do que exprimindo. Na realidade não vai sobrar nada. Se sobrar um Oswaldo França Júnior já é uma grande coisa.
Mário Viana: Fernando, você disse no início que você recebe muitas cartas e muita gente te procura, tal. Você recebe originais de escritores que podem vir a ser bons ou está abaixo da média?
Fernando Sabino: Olha, eu tenho verdadeiro pavor de ler original, eu vou te dizer por quê. Porque o escritor que escreve um livro, que sofre, que sua, ele espera no mínimo que eu diga que é uma obra-prima. E eu digo. Eu não tenho caráter nenhum. Eu não tenho coragem de dizer: “você não tem competência, você seria um grande médico, você não é escritor”. Primeiro que isso é uma audácia que eu não teria, porque ele pode ser escritor. Não se esqueça que o Gide [André Paul Guillaume Gide (1869-1951),  escritor francês, prêmio Nobel de literatura de 1947, fundador da editora Gallimard, autor, entre outras obras, de Os moedeiros falsos (1925)] disse que o [Marcel] Proust [(1871-1922), escritor francês cuja obra é reconhecida como fundamental na literatura, entre sua obras destaca-se o romance conhecido mundialmente Em busca do tempo perdido]. Então há esse perigo. E, segundo, há o perigo de você... Eu já tive casos graves inclusive de pessoas que eu apreciei e gostei e que resolveram morar na minha casa. [risos] Literalmente. Já baixou um da Bahia lá em casa com uma kombi e com a família, papagaio, mala e tudo, porque eu tinha dito que o livro dele era muito bom. E ele deixou, fechou, era médico no interior da Bahia. Fechou e veio para o Rio. Não me encontrou, veio para São Paulo...
Mário Viana: Mas era bom o livro?
Fernando Sabino: Eram contos, eram muito bons. Agora, raríssimas vezes é bom, 99% dos casos é uma ilusão, é uma inquietação momentânea que leva o sujeito a achar... Como para escrever, você usa a mesma linguagem da linguagem coloquial diária, cotidiana, você não vai sentar no piano e tocar uma sinfonia, tocar uma música, tocar um prelúdio; você não vai pegar um violino, você não vai pegar um pincel e pintar... Pintura às vezes também tem. Mas a literatura é que é o primeiro veículo para você extravasar uma inquietação existencial qualquer. Nem que seja a paixão por uma mulher, você já vai fazer um soneto, fazer um conto...
Marcos Faerman: Você cometeu alguma vez poesias? Fez alguma vez poesias de amor, essa coisa pequena? Não há nada na sua obra.
Fernando Sabino: Confessável ou não? Só inconfessável. Mas então é esse fenômeno. Então eu não tenho coragem de dizer para uma pessoa, porque eu prefiro que não me dêem, porque a minha opinião não será sincera.
Caio Fernando Abreu: Fernando, e além de Oswaldo França Júnior, de escritores mais recentes, que começaram a publicar dos anos 60 para cá, quem você gosta?
Fernando Sabino: Olha, eu vou pedir a você licença para nem responder essa pergunta por duas razões. Primeiro porque eu estou absolutamente desatualizado, sabe? Eu estou naquela fase de começar a querer reler as coisas que eu li na mocidade e que não aproveitei como devia. Eu estou lendo Dostoievski, eu estou lendo Montaigne [Michel de Montaigne (1533- 1592), grande pensador e escritor humanista da renascença francesa,], eu estou relendo gente assim, Sthendal [pseudônimo de Henri-Marie Beyle (1783-1842), escritor francês do século XIX, autor de O vermelho e o negro]. É aquele negócio, como dizia o Rubem Braga, “o tempo já me é pouco para fazer o bem”. Eu sei que devo estar perdendo muita coisa boa. E, segundo, se eu mencionasse esse ou aquele que eu cheguei a ler e gostar, eu estaria cometendo injustiças, e eu prefiro até não falar porque realmente o meu conhecimento é muito precário. Eu estou muito desatualizado com relação às boas coisas que têm saído de João Cabral de Mello Neto [(1920-1999), poeta e escritor pernambucano] para cá. Este foi a última... O quê? Vinte anos, portanto. Daí para cá, Clarice [Lispector], João Cabral, tal, eventualmente surgiu um ou outro que eu sei que é bom, mas eu não teria como dizer e sustentar que é bom. Eu posso dizer que eu ouvi dizer ou li alguma coisa dele. E aí seria uma opinião leviana, e eu prefiro não dar.
Caio Fernando Abreu: Você acha que desde que você publicou O encontro marcado, o mercado editorial brasileiro melhorou, os editores melhoraram, tratam melhor o escritor brasileiro?
Fernando Sabino: Em certo sentido sim, e eu vou te dizer por quê.
Caio Fernando Abreu: Você diz isso como editor, não é?
Fernando Sabino: Porque eu tenho experiência como editor. Eu acho o Brasil um prodígio porque o Brasil é um país de analfabetos, você sabe, 50 milhões de analfabetos, que se dá o luxo... Uma vez um professor francês veio nos visitar na editora e eu saí passeando com ele pela rua, e paramos numa livraria na avenida, ali perto, em Copacabana, onde havia livros de bolso, Livros de Ouro, se não me engano.
Caio Fernando Abreu: Era Edições de Ouro.
Fernando Sabino: E ele quase caiu para trás porque ele viu uma coleção de livros que tinha assim, Plotino [(204-270 d.C), depois de Platão e Aristóteles, ele é um dos filósofos mais influentes da Antigüidade], Platão, tinha [...]. Só de franceses tinha escritores assim tipo Montesquieu [Charles de Montesquieu (1689-1755), político, filósofo e escritor francês], tinha escritores desse tipo, uma coleção inclusive para estudantes. Ele falou: “Mas como é isso, quem lê isso? Como é que é? É formidável? É bem traduzido?” Eu falei: “excelentemente traduzido”. Ele olhou, viu, tinham escritores inumeráveis, que você não pode imaginar, Hamlet, tudo que você pode imaginar tinha ali. E eu fiquei curioso de saber. E nessa época, se não me engano, Janio de Freitas era editor, tinha uma editora, e que editava esses livros. Eu tive a curiosidade de saber quantos editavam, quantos tiravam por mês: dez, doze mil exemplares por mês de cada um. Então eram 50, 60 mil exemplares por mês desses livros. Quem é que lia isso? Você chega numa banca de jornais e vê a quantidade de jornais e revistas, cada uma dessas organizações, Editora Abril, Organizações Globo, tem 50, 60 revistas semanais, mensais. Então quem é que lê isso tudo? Quem é que tem dinheiro para ler isso tudo? E o preço dos livros? Eu tenho a impressão que está se publicando mais de 100 livros novos por dia no Brasil. Muito mais... Então há essa pletora de publicações que não corresponde ao nível, ao poder aquisitivo do povo brasileiro e nem ao nível cultural. Eu não sei. É um fenômeno.
Jorge Escosteguy: Fernando, por favor, o nosso tempo está se esgotando. A Cláudia tem uma última pergunta para você. Por favor.
Cláudia Boyago: Fernando, a gente falou muito do passado, mas nós estamos entrando na década de 90, que é a última década do século. O que você pensa disso, como você vê o futuro?
Fernando Sabino: Como eu vejo o futuro? Eu tive que fazer uma palestra agora lá em Florianópolis e me fizeram uma pergunta semelhante, e mais, a pessoa me perguntou o seguinte: “Você, que foi jovem, você pensa, vê o futuro como você via quando tinha 20 anos?” E essa pergunta me tocou muito fundo. “O que aconteceria se você encontrasse você mesmo na esquina, você pensa como você pensava?” Eu falei: “olha, já me fizeram essa pergunta e a resposta que eu dei na época foi que se eu dobrasse a esquina e me encontrasse comigo aos 20 anos, nós dois fugiríamos espavoridos um do outro”. Mas hoje eu tenho a impressão que não, que eu seguraria esse jovem pelos ombros, olharia ele nos olhos e dizia assim: “você pode ficar tranqüilo porque em tudo que você acreditava eu continuo acreditando”. Eu vejo o mundo de 90 e do ano 2000, como eu via aos 20 anos. Exatamente.
Jorge Escosteguy: Fernando Sabino, nós agradecemos a sua presença hoje aqui no Roda Viva, agradecemos a presença dos nossos convidados. Uma boa noite a todos.
Fernando Sabino: Eu gostaria também de agradecer a possibilidade que você me deu de ter a sauna mais agradável, mais inteligente, mais afetiva. Eu pensei que eu ia ser interrogado de tal maneira que eu estava pronto a confessar. Mas quero agradecer a vocês o alto nível das perguntas, que eu, absolutamente, da maneira mais sincera, lhes digo que foram muito melhores do que as respostas.
Jorge Escosteguy: Nós agradecemos ao senhor também. Uma boa noite a todos.
[Fernando Sabino faleceu no dia 11 de outubro de 2004, na cidade do Rio de Janeiro. A seu pedido, seu epitáfio é o seguinte: "Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino".]
 

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