quarta-feira, 28 de novembro de 2012

OS PARADOXOS DA VIDA NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES


Em "Motivo", o primeiro poema da obra-prima “Viagem” (1939), Cecília trabalha com a questão da meta-linguagem, ou seja, o fazer poético. No entanto, o foco aqui é a análise do poema, à luz de Kierkegaard. “Ocorre que se o paradoxo é o lugar onde uma verdade se revela a nós, nossa situação não deixa de ser paradoxal. Não cessamos de aspirar a uma plenitude enquanto vagamos no meio de uma incerteza infinita, é com esta própria incerteza que nos devemos contentar como verdade”, revela o filósofo. Vejamos o poema “Motivo”, que é repleto de paradoxos:

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E sei que um dia estarei mudo:
- mais nada...

No poema, o paradoxo está presente em vários versos: “Não sou alegre nem sou triste”; “Não sinto gozo nem tormento”. Entretanto, apesar dos paradoxos, o eu lírico realiza ações (vive) mesmo com todas as contradições da vida. É uma ironia da vida, em meio a tantas incertezas, o Homem querer sistematizar a vida. Desse modo, a realidade deixa de ser “realidade” e passa a ser “possibilidade”. A vida individual é irredutível a conceitos, pois todo sistema é insuficiente. Kierkegaard chega à conclusão que captar a realidade a partir da lógica é resolvê-la em mera possibilidade. Todos os paradoxos do poema indicam que o eu poético oscila entre idéias contrárias: triste/ alegre, gozo/ tormento, desmorono/ edifico. Assim sendo, o indivíduo vive (sente) as duas idéias, pois não há como ser o mesmo sempre. Ser indivíduo é eleger-se e apaixonar-se por si próprio. Aqui, “os motivos” da existência são a inconstância e a incerteza.

De acordo com as idéias de Kierkegaard, o existente é o Homem vivente, que dirige sua atenção sobre o fato de que existe, que não se fecha na especulação abstrata. A existência é o momento de decisão e da paixão. No poema, vê-se que o eu lírico vive seus problemas existenciais, porém segue em frente, e no fim revela: “E um dia sei que estarei mudo: - mais nada”. Este verso, que é uma das certezas do indivíduo, parece remeter a morte, também uma certeza, pois, para Kierkegaard, não há reencarnação, só existimos uma vez. E a existência é movimento. Pensar e existir estão juntos na existência.

O canto mudo

Nas estrofes há uma quebra de ritmo, seria uma tensão rítmica, pois as estrofes são constituídas de quatro versos, sendo três octossílabos e o ultimo trissílabo. O ritmo do poema está ligado ao ritmo da vida, que é cheia de “quebras”.
Geralmente, as certezas do eu poético estão acompanhadas do verbo “ser”: “sou poeta”, “sei que canto”, “sei que estarei mudo”. A subjetividade é única nesse caso e a manifestação do eu lírico na cultura se dá aí, haja vista que um “ser existente” é um pensador subjetivo. “O indivíduo é a categoria através da qual devem passar o tempo, a história, a humanidade. A compreensão deve acontecer na existência e não fora dela. O Homem é uma união de contrários – de autoconsciência e de um corpo físico”, aponta Kierkegaard. Está aí, porém, o foco do terror, ou angústia do Homem. O ser humano é este paradoxo, tem consciência de sua individualidade, do terror do mundo e de sua morte.

Em “Motivo”, apesar de cantar ao lado das individualidades e das contradições, o indivíduo tem a consciência que um dia não poderá mais cantar, estará mudo (morto). A morte é, portanto, a maior e mais peculiar angústia do Homem. O ser humano está limitado pelo mundo e pelo seu espírito, então, experimenta angústia porque é esta síntese entre espiritual e corporal. O eu lírico parece saber de sua morte e parece não se importar, este é o estilo usado por ele para funcionar no mundo automaticamente. Assim, seu “motivo” de viver é a eterna busca do que ele não conhece.

(Texto de Ricardo Salvalaio publicado no Caderno Pensar, do jornal A Gazeta, no dia 14/07/2012)

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