sexta-feira, 22 de março de 2013

LICENÇA PARA CONTAR: CLEIBSON FREITAS



Cleibson Freitas nasceu em 1985, no Espírito Santo, residindo sempre na cidade de Cariacica. Filhos de pais humildes, tornou-se um apaixonado e curioso pelo ser humano da vida comum. Graduado em Língua Portuguesa e Literatura de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Espírito Santo, o escritor inicia sua carreira com a publicação de O óvulo e o ovo: tudo de novo. Nessa obra, Cleibson Freitas talvez comece seu primeiro e verdadeiro encontro com a arte. Como ele mesmo diz: “escrevo para ser livre. Ou melhor, brincar de ser livre, de ter prazer e brincar de ser Deus. Escrevo para me esconder do mundo e anular-me por completo. A literatura também serve para nos escondermos”. Confira, abaixo, o conto “Quinhentismo”:

Quinhentismo

Fico um pouco envergonhada e até meio pálida quando resolvo relembrar este fato. Já faz tanto tempo. Nada menos que cinco décadas e meia. Ficar relembrando isso não combina muito com as minhas feições graves e com os meus cabelos brancos. Cabelos brancos de uma anciã que em breve entrará na casa dos setenta anos, idade que não permite mais que eu me aventure nas peripécias vergonhosas do passado.
Acontece que minha neta Rosalina não acreditou muito no fato contado por seu pai, que é meu filho, e está curiosa pra ouvir a história da minha própria boca. Acho que a história despertou um enorme interesse nela. É uma criança boa e esperta, a Rosalina. É possível até que ela já esteja com a cabeça preparada pra ouvir este relato. Semana passada mesmo, inclusive, ela fez uma pergunta pro pai com uma dose incrível de percepção e inteligência:
– Papai, por que todo velhinho mora sozinho num quartinho separado? O avô da Patrícia é igual à vovó, ele também mora num quartinho nos fundos da casa dela.

Fazia muito tempo que eu não ouvia uma pergunta tão intensa. Vindo da minha netinha, então, foi uma surpresa muito agradável. O que muito me impressionou, foi que essa pergunta que ela fez ao pai, também eu fiz pra minha mãe sessenta anos atrás, quando eu fui visitar meu avô pela primeira vez. Anos mais tarde, quando meus irmãos e eu abandonamos nossa mãe aos setenta e cinco anos num cubículo miserável, pude entender porque se enfia velho num quartinho separado: é só um pequeno sintoma da frieza das relações humanas...
Rosalina hoje vem me visitar. Vem com o pai, indivíduo que só vem me ver por causa dos pastéis que faço. Desde criança que ele gosta dos meus pastéis. Naquela época, eu me comprazia em ver o desgraçado comer porque ele ainda era uma criança e também ainda não me tinha enfiado nesta merda de cômodo escuro. Mas hoje, pra não faltar com a sinceridade, a vontade que tenho é de colocar veneno no pastel desse covarde. Às vezes tenho a impressão de que esse maldito até torce pra que a mão pesada da morte logo pouse sobre minha face. Mas eu resisto ao afago fúnebre. Embora nessa idade a gente sinta o peso do existir achatar o corpo, eu ainda quero viver mais uns anos. Quero viver mais uns anos, porque ainda não aprendi como se despedir da vida. E talvez nunca aprenda. Aprender a me despedir foi uma coisa que eu nunca fiz com afinco. Eu não gosto de fim. O fim é assombroso. Esta vida é tão cheia de beleza, que o fim chega a ser um monstro assombroso.

Um dia desses falei pra Rosalina que o fim é um monstro assombroso e acho que ela pensou que minha memória já está ficando deteriorada pelo tempo. Talvez ela tenha imaginado que eu esteja caducando. Pobre menina. Quando penso que o tempo também vai se encarregar de transformar a jovialidade dela num traste enrugado e amassado, eu me estremeço toda. Mas atrás da destruição física vem a maturidade da alma. É o que eu chamo de equilíbrio das vantagens e desvantagens.
No dia em que eu fiquei sabendo que o pai de Rosalina mencionou pra ela a história pela qual passei, eu chorei profundamente. É que essa não é história infanto-juvenil. Tampouco é fábula. É história real. História que vivi. A narrativa não é apropriada pra menina. Mas, considerando que o safado do pai já iniciou a narração e que ela insiste em ouvir o relato da minha própria boca, vou contar pra Rosalina o grotesco episódio que me aconteceu num tempo bem remoto. Num tempo em que eu ainda era uma adolescente colegial.

Naquela época, contava eu quinze anos, ocorreu-me algo pouco habitual. Durante uma aula sobre a invasão portuguesa no Brasil em que o mestre Calixto descrevia os primeiros contatos dos brancos com os nativos, eu levantei da carteira em que estava sentada, dei um grito horripilante e, de pé para toda a classe, tirei todas as minhas roupas e permaneci nua durante um tempo quase eterno. A minha nudez, ali, perante o professor e a turma, consistia num ato atávico e primitivo, que dizia que todo ser provém de outro ser. O mestre Calixto não compreendeu o porquê daquela audácia e entrou num desespero estrondoso. Ao certo, nem eu própria compreendia por que agia daquela maneira. Uma força do universo me fizera arrancar todos aqueles pedaços de pano que me cobriam, e eu não entendia o que se passava comigo. Não sentia nada e nem entendia o motivo daquele comportamento inusitado. Só sentia o vigor dos meus seios querendo arrebentar as paredes da escola e um vento que soprava quente na minha vagina descoberta enquanto eu estava em pé gritando como uma selvagem. Era um vento quinhentista zunindo forte e perpassava os séculos para vir bater no meu buço vaginal.

Quando consegui parar de gritar, lembro apenas que o mestre Calixto se esforçava pra me segurar. Eu o empurrei com uma força que desconhecia em mim, fazendo com que ele batesse a cabeça na lousa e desmaiasse. Só aí então pude perceber que eu tinha passado por uma espécie de devaneio absurdo. E, ao voltar à realidade, o que vi foi assustador: não era só eu que tinha passado por aquele delírio. Todos os meus colegas também estavam de pé, nus e exclamando palavras incompreensíveis. O mestre Calixto, desacordado ao redor da lousa, era arrastado pelas pernas e devorado antropofagicamente; os seus olhos foram arrancados e disputados como alimento; as orelhas, uma era raivosamente triturada por alguém, a outra, fora arremessada longe pra por fim à disputa; e o seu nariz, pobre mestre, fora esmagado pelos dentes dos indivíduos civilizados, transformados de repente em canibais. Pude ouvir aí, sem exageros, o tilintar da cartilagem em atrito com os dentes dos ferozes. Após a cabeça desaparecer devido àquela horrenda e furiosa deglutição, abriram a barriga do mestre com um estilete e suas vísceras passaram a ser sugadas terrivelmente. O que sobrou do corpo – apenas um amontoado de pele – guardava marcas de mordidas, arranhões e hematomas.  Finalmente, ao ficar reduzido numa coisa semelhante a uma massa pastosa esquisita, Calixto foi colocado em cima da escrivaninha e rodeado por todos como num ritual autóctone. Tudo foi tão rápido como a velocidade de um relâmpago. Ao término, ninguém sabia o que tinha se passado. Todos ensanguentados choravam horrorizados o desaparecimento do mestre Calixto.

Ao contar essa história pra Rosalina, temo que ela pense esse fato como uma mera invenção da minha memória caduca. Mas, como minha mãe dizia, “a verdade existe antes de ser duvidada”. Então, se Rosalina quiser acreditar nesse horrendo fato, que acredite! Se não quiser, ficarei contente com que ela encare tudo como uma maravilhosa fábula.




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