quinta-feira, 30 de maio de 2013

O TEATRO DO DESOPRIMIDO E A CATARSE DO CENÁRIO MIDIÁTICO.


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As sociedades humanas nada mais são que cenários teatrais produzidos por nós mesmos, num contexto em que somos tanto mais coadjuvantes quanto mais acreditamos em nossas próprias vidas, como se não fossem partes e contrapartes do teatro social no qual atuamos como personagens de nós mesmos.
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Se a afirmação “o mundo é um teatro” é verdadeira o é porque nele atuamos como personagens que representam a si mesmos e, ao fazê-lo, atuam inevitavelmente como figurantes do cenário-mor: o teatro civilizacional que nos cabe viver, atuar, cumprindo à risca um script predeterminado quanto mais nos pensamos livres para escolher o mesmo, a saber: os objetos, sujeitos, valores, identidades, tecnologias, percepções, sensações, intelecções, saberes, amores, amigos, inimigos produzidos pelo próprio teatro civilizacional em que vivemos, para, antes de tudo, compor, ainda que de forma dinâmica, o seu cenário produtivo e simbólico, com seus sistemas de bens, com seus palcos institucionais e produtivos, nos quais atuamos como a gente mesmo, sendo efetivamente mero figurante, independente de nossa posição social, de vez que de uma forma ou de outra, mesmo como dissidentes, dependendo das circunstâncias históricas, com o passar do tempo somos igualmente transformados em ícones após sacrificados – ícones, bem entendido, do próprio cenário, da própria civilização, da própria farsa que somos.
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Em América (1927), romance de Franz Kafka, o protagonista da narrativa, Karl Rossmann, foge de uma Alemanha decadente, após ter engravidado uma empregada, e parte clandestinamente para os Estados Unidos. Sem conseguir trabalhos na terra do Tio Sam, depara-se com um cartaz que diz: “No hipódromo de Clayton se contratará hoje desde as seis horas da manhã até a meia-noite, pessoal para o Teatro de Oklahoma. Chama-se o grande teatro de Oklahoma! (...) Este é o teatro que está em condições de empregar qualquer pessoa. Maldito seja aquele que não acredite em nós! Adiante, a Clayton! (Kafka,América, p.291)”. Diante de um cartaz tão apelativo, Karl não perde tempo, vai depressa para Clayton, onde tudo que você quiser ser você será. O grande teatro de Oklahoma, na ficção de Kafka, é a consciência ficcional de que América será doravante o teatro do mundo e de que a montagem da vida humana, a que chamamos de civilização, é cenário teatral onde atuamos para sermos o que quisermos, seja na realidade, seja em sonho, em desejo.
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Chamemos de teatro dos figurantes ao Grande Teatro de Oklahoma, pois independente do papel que nele desempenhamos, em nossas vidas concretas, seremos sempre coadjuvantes de um cenário civilizacional previamente estabelecido. Chamemos a decadente civilização burguesa, da qual não passamos de meros figurantes, de o nosso Grande Teatro de Oklahoma; nela, tal como em Clayton, tudo que quisermos ser, seremos, num contexto em que sua teatral palavra de ordem é: “Maldito seja aquele que não acredite em nós!” Chamemos, por outro lado, de Teatro do Desoprimido a uma aberta, inacabada e experimental forma dramática cujo objetivo principal é: “Sejamos malditos, não acreditemos no Grande Teatro de Oklahoma da civilização burguesa!” Fujamos não de uma Europa em decadência rumo ao teatro burguês do momento, mas antes de tudo fujamos da civilização burguesa que fez de toda a Terra o cenário de nossa deplorável e submetida presunção de não figurantes, assim sendo mais ainda.
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A burguesa civilização é o cenário dos cenários, o terráqueo cenário de Oklahoma-mundo, formado, deformado e reformado a partir do caos representacional e apresentacional catárticos do infernal grande teatro dos figurantes das civilizações pré-modernas, barbárie de barbárie nas ilhas de mais monumentos à barbárie às quais damos o singelo nome de O grande teatro humano dos figurantes que pensam não ser.
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Tal como as civilizações precedentes, a nossa constituiu-se e se constitui a partir de três forças despóticas: a hierarquia, a polarização e a exploração. Diante desses três mastros fundamentais das civilizações de tradição do oprimido, para dialogar com Walter Benjamin, o teatro como representação isolada, encenado em cenários prévios, não vale a pena porque tudo alimenta o grande teatro de figurantes da civilização burguesa; tudo é tomado por suas linhas de força ilusionistas e se transforma, de um modo ou de outro, em mais hierarquia, mais polarização, mais opressão.
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Para transcender o caos ilusionista da civilização burguesa, o Teatro do Desoprimido não pode acreditar nem na representação e nem na apresentação, muito menos na catarse nela mesma. Sendo planetária, a civilização burguesa transforma tudo – a dimensão econômica, cultural, política, a relações interpessoais – em cenários de sua própria catarse, colocando-nos na cena ou esteira produtiva, reprodutiva de sua autovalorização sem fim, sob a forma de mais-valia, a única catarse verdadeiramente universal. Para tal, ela se vale do melhor de nós: nossa vontade de viver, nossa potência criativa, nossa individualidade e coletividade, transformando-nos sem cessar em mercadorias dela mesma, no jogo cenográfico de seus sistemas físicos (instituições, parques produtivos, cidades, territórios, corpos, tecnologias); e de seus sistemas discursivos, saberes, bens simbólicos, afetos, sistemas de comunicação. É assim que somos apanhados pelos seus cenários físicos e discursivos. É assim que, quanto mais nos agitamos, para viver, mais nos tornamos coadjuvantes das desdobras e dobras de sua determinista tragédia: o progresso nele mesmo, por ele mesmo, nas costas de nós mesmos, como se fôramos o próprio trem descarrilado da forma mercadoria ou da abstração do dinheiro, a hierarquizar-nos, polarizar-nos, explorar-nos quanto mais nos iludimos ser livres dentro dela, através dela, contra ou a favor dela.
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Para o Teatro do desoprimido, desoprimir é produzir um teatro real e militante de desconstrução dos sistemas de bens e de terror da civilização burguesa em seu conjunto, no Ocidente e no Oriente. Édipo rei(427 a. C), de Sófocles, é, sob esse ponto de vista, um marco importante para o Teatro do Desoprimido, pela dupla questão trágica que apresenta e representa: a do incesto e da cegueira. Aquele porque na civilização burguesa, tudo é incestuoso, inclusive o bem e o mal, inclusive os opressores e os oprimidos, direita e esquerda, norte e sul, cristãos, mulçumanos, judaísmo. A segunda, a cegueira, porque, num mundo de incesto generalizado, no qual, negando-o mais o afirmamos, só nos resta a cegueira como precária condição desesperada para nem nos vermos nele e nem o vermos, na ilusão de que, cegos, estamos fora dela, da vergonha de ser um coadjuvante inevitável da farsa trágica que montamos para nós mesmos, animais de rebanhos que temos sido, independente se somos reis ou se somos súditos, exploradores e explorados.
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No entanto, ainda que seja uma referência dialógica, mais que ideológica, Édipo rei o é pelo o que o Teatro do Desoprimido não pode ser: incestuoso ou cego. Não acreditamos nessa falsa alternativa trágica: a farsa montada para ser assim a fim de que o grande teatro de figurantes das civilizações humanas permaneça como sempre foi: hierárquico, polarizado, usurpador. O personagem Édipo, da peça de Sófocles, não passou ainda de um coadjuvante ao mesmo tempo opressor e oprimido. Ele é um personagem envergonhado pelo incesto geral de nossas civilizações de tradição do oprimido.
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Para o Teatro do Desoprimido, não existe espaços para vergonha; é um teatro sem vergonha precisamente em relação às representações apresentadas como as únicas possíveis na trágica farsa da opressão oprimida que toma tudo e nos toma, oprimidamente, independente da posição social que ocupamos, teatralizando-nos sem cessar.
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Hamlet (1601), de Shakespeare, também é um referencial importante não apenas por causa do “ser e não ser”, no famoso monólogo de Hamlet, a dúvida como fundamento sem fundamento, mas também e antes de tudo por ser uma peça que se sabe representação e, sabendo, sabe que tudo é representação de representação, logo farsa, num mundo de hierarquias, polarizações, sequestros das multiplicidades vitais. Sob esse ponto de vista, a observação do personagem Apolônio, ao se referir à própria peça, é exemplar: “Esta é um drama, uma farsa, uma pastoral, uma tragédia”, tudo ao mesmo tempo agora, num contexto em que o referente que interessa para o demonstrativo “esta”, é a própria tradição do oprimido: uma farsa, um drama, uma pastoral, uma tragédia; uma enfim mistura de gêneros representativos a nos representar quanto mais os representamos com a nossa própria apresentação corporal, pessoal, burguesa, porque, compartilhando com Robert Kurz, tudo na civilização burguesa se transforma em forma-mercadoria, razão pela qual tudo é aburguesado.
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A estética teatral de Bertold Brecht também nos é uma referência importante no que contém de vontade de desrepresentar através da recusa ao recurso aristotélico da catarse, como que a dizer, em suas peças, e efetivamente dizendo: público que nos vê, o teatro não é a vida e a vida não é o teatro, embora o que veem, a montagem, o teatro em si, seja o que a vida da tradição do oprimido é, tal qual o teatro: uma montagem feita para produzir catarse, para purgar sua emoção a um tempo de opressor e oprimido a fim de que tudo venha a mudar, emotivamente, para nada mudar.
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Com Brecht aprendemos que a catarse deve sair da representação e alcançar a vida individual e coletiva, na montagem mesma que interessa: a do teatro civilizacional da civilização burguesa. O Teatro do Desoprimido tem como desafio experimental purgar emoções revolucionárias dentro dos sistemas de montagem da civilização burguesa, sem, para fazer-se como revolucionário, se deter às suas armadilhas cenográficas – e tudo é cenografia, saberes, poderes, viveres, na, da e para a civilização burguesa. Para tanto, repetimos, o Teatro do Desoprimido não representa, atua, intervém, faz da vida um teatro da vida: um teatro fora da civilização burguesa, experimentalmente, ao mesmo tempo vivendo e atuando, pondo-a em xeque precisamente nas suas linhas de força, no momento histórico de sua montagem produtiva planetária.
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Esta observação precedente é fundamental e faz do Teatro do Desoprimido uma potência ao mesmo tempo artística e política, além de pensante, amorosa, tendo em vista, como desafio histórico, as seguintes questões: quais são os cenários fundamentais do sistema de montagem da civilização burguesa no atual presente da humanidade? Onde devemos intervir de forma desoprimida, desconstruindo tanto a opressão como o oprimido? Essas são duas perguntas de extrema importância para o Teatro do Desoprimido. Não temos mais tempo a perder e tampouco podemos desperdiçar nossas energias teatrais desopressoras.
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É preciso, pois, escolher o alvo certo para teatralizar nele, num catártico e vivo exercício experimental de desopressão individual e coletiva, a fim de desrepresentarmos os ícones representativos da civilização burguesa atual, desmontando-os teatralmente, e, ao mesmo tempo, realmente, surpreendendo-nos no flagrante delito de pertencer a esta genocida e patológica civilização, pois tudo é delituoso nas sociedades de hierarquia, de polarização, de exploração; tudo é delituoso e ao mesmo tempo, como dissera o personagem Apolônio de Hamlet, farsante, dramático, idílico e trágico, sem contradição alguma.
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Não resta a menor dúvida de que as cenografias fundamentais do atual presente histórico da humanidade são as montagens farsantes, dramáticas, idílicas, trágicas e antes de tudo publicitárias das corporações multinacionais. São elas que mandam e desmandam por todos os lados; são elas que arranjam e rearranjam as configurações econômicas, subjetivas e epistêmicas da humanidade toda, razão pela qual são elas que o Teatro do Desoprimido tem o desafio de desmontar, revelando os mecanismos de suas farsantes catarses com muito humor, com muita inteligência, plasticidade, parodiando caricaturalmente suas táticas, estratégicas e objetivos explícitos e ocultos.
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Outra importante referência para o Teatro do Desoprimido é a estética do pior de Samuel Beckett, com seus cenários textuais mínimos e predominantemente representados por personagens velhos, vetustos, fora das ilusões da vida no mundo burguês, onde a velhice não tem vez pela singela razão de que a principal farsa de nossa civilização é precisamente o esforço que ela faz para camuflar sua velhice histórica.
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Nossa civilização, herdeira das demais, de tradição do oprimido, é vetusta, razão pela qual nela nascemos velhos, milenares, antigos, antiguíssimos. O Teatro do Desoprimido é também um exercício experimental de juventude que de desoprime, logo rejuvenesce, na contramão da velharia geral que é a civilização burguesa. Desoprimir-se, nesse sentido, é rejuvenescer, logo é tornar-se desburguês, porque uma coisa é certa, na civilização em que vivemos todos somos velhamente burgueses, sem exceção, opressores e oprimidos. É por isso que desoprimir significa uma intervenção teatral individual e coletiva (sempre uma coisa e outra, de forma indiscernível) para fora da condição do opressor e de oprimido, procurando esconjurar a ambos a fim de produzir o fora da tradição do oprimido, atuando, vivendo, teatralizando-nos como não oprimidos e não opressores, tendo como foco de desmontagem as corporações multinacionais que por todo lado configuram e desconfiguram os rostos dos opressores e dos oprimidos, chamando-nos sem cessar de vetustos doentes de nós mesmos, expulsando-nos para a condição de anacrônicos quanto mais nos acreditamos atuais, jovens, contemporâneos.
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Por fim, outro importante marco intertextual para o Teatro do Desoprimido é o nosso Teatro do Oprimido, de Augusto Boal. Do Teatro do Oprimido, o do Desoprimido se inspira, longe de qualquer mistificação, por causa de sua escolha política: no oprimido. Não existe outro modo de transformar revolucionariamente as civilizações de tradição do oprimido, como a nossa, sem fazer uma opção clara por este último. Qualquer outra escolha que não se fundamente por esse ponto de vista decisivo significa a opção contrária: pelo opressor. Só existe outra forma de transcender a relação entre oprimido e opressor senão fazendo opção pelo oprimido, porque este é o que contém a potência, mesmo que não o saiba ou que a recuse, de produzir o fora da civilização burguesa, por ser fundamentalmente o que perde, a própria vida, nela.
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Por outro lado, sem qualquer pretensão de originalidade, afirmamos que a relação entre opressor e oprimido é parte e contraparte da civilização burguesa, razão por que fazer opção pelo oprimido não significa e não pode significar apegar-se à condição de vítima, buscando, como recompensa, a reparação dos danos historicamente sofridos. A civilização burguesa sofre do mal de representação de si mesma através da repetição dramática e exaustiva, por todos os lados, da figura do opressor e do oprimido, mesmo considerando a circunstância de que todo oprimido possui uma legião de opressores em si e todo opressor possui outra legião de oprimidos. Tudo isso é extremamente enfadonho e nunca sai do lugar, anda em círculos; movimenta-se para mais tragicamente se reproduzir, de forma catártica e farsesca.
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Para sair desse sistema de farsas entediantes que teatralizam sem cessar as mutações do mesmo, é preciso produzir o teatro do oprimido desoprimindo-se nos cenários dominantes da opressão contemporânea, quais sejam: as multinacionais e muito especialmente as corporações midiáticas locais e planetárias. O farsante teatro da opressão ocorre nesses cenários de modo que é neles que o teatro do desoprimido está na alegre, despojada, corajosa, revolucionária obrigação de intervir, dramaticamente, mas fora do sistema de catarse, como o de opressor e oprimido, da civilização burguesa.
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Embora o oprimido tenha nome próprio e o é antes de tudo em relação aos três poderes mais opressores da história da humanidade, o econômico, o étnico e o patriarcal, num certo sentido, na civilização burguesa (mais que dizer que todos somos opressores, como é comum ouvir aqui e ali, especialmente nos círculos supostamente bem informados) é o contrário que devemos dizer: nela todos somos oprimidos, pois todos estamos condenados à mesma humanidade hierárquica, polarizadora, ancorada na exploração econômica, étnica e de gênero.
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É nesse sentido que acreditamos ser possível dizer que o Teatro do Desoprimido é de todos e de ninguém, assim como não temos receio de afirmar que a universalidade dele se inscreve no desafio da teatralização liberadora para todos os humanos, através de uma catarse militante que sabe definir o interlocutor a ser negado, a civilização burguesa; assim como sabe teatralizar experimentalmente o que deve ser afirmado: outro modelo de civilização, sem hierarquias, sem polarizações, sem exploração, num comunismo planetário sem atores da representação e apresentação burguesas; sem, pois, opressores e oprimidos e seus dilemas com seus enfadonhos e neuróticos lemas de mais opressor e mais oprimido quanto mais nos fazemos sem buscar um fora em relação ao cenário planetário dentro do qual somos todos figurantes da abstração geral do dinheiro.
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O Grande Teatro Oklahoma do mundo contemporâneo da civilização burguesa que incessantemente, de forma absolutamente apelativa, nos diz: “Aqui você pode ser tudo que quiser!”, tem nome próprio: as corporações midiáticas planetárias. São elas que nos amedrontam sorrindo com a seguinte palavra de ordem, por todos os lados, nunca alados: “Maldito seja aquele que não acredite em nós!” Por todos os lados, nunca alados, insisto, o que vemos é a submissão a essa palavra de ordem intimidadora e sedutora, sem contradição alguma. É assim que a política se rende ao Grande Teatro de Oklahoma das corporações midiáticas. É assim que a educação igualmente se rende, em todos os níveis. É assim que o poder judiciário também se rende e por sua vez o poder executivo, o legislativo, o ministério público, a polícia federal, o que chamamos de arte, a música popular e a não popular, o amor. É assim enfim e em começo que nos rendemos: atuando como figurantes, quanto mais famosos, no Grande Teatro de Oklahoma das corporações midiáticas.
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Por todo lado, tendo em vista o Grande Teatro das corporações midiáticas, todo aquele que descrê de sua religião catártica espetacular, planetária, será visto, por todos os figurantes protagonistas (porque desejam ser famosos, midiaticamente), como malditos porque não creem nas representações e apresentações, sempre publicitárias, da catarse geral que as corporações midiáticas descarregam sem cessar por todo o planeta em nome do cenário milenarmente construído da burguesa civilização, teatro de todos os teatros civilizacionais precedentes, razão pela qual é performática o suficiente para teatralizar todos os dramas: o drama de ser opressor, o drama de ser oprimido, o drama de ser democrático, o drama de ser ditador, o drama de ser negro, branco, amarelo, cristão, homem, mulher; de ser enfim mais um figurante rosto teatral da civilização burguesa.
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As corporações midiáticas desempenham uma importância axial, para o Grande Teatro dos figurantes da civilização burguesa atual, que se desmorona e nos desmorona, sempre como coadjuvantes quanto mais nos acreditamos livres dentro desse cenário, através de seus intrincados sistemas de referências ilusionistas. Sem as corporações midiáticas, a civilização burguesa transformará a todos os humanos, seus oprimidos reais, em malditos porque estes não mais acreditarão nela. As corporações midiáticas, portanto, com sua função teatro dentro da função teatral maior da civilização burguesa, possuem o seguinte e inexorável desafio: o de gestora catártica das crenças milenares que a humanidade vem produzindo no interior sem fundo de suas teatrais civilizações de figurantes, os quais se pensam protagonistas de si mesmos quanto mais são coadjuvantes do despotismo e carnificina generalizados que as determinam em seus sistemas de montagem mesmo, razão pela qual o desafio desde sempre foi o de desmontar o sistema de montagem ilusionista e real das civilizações de hierarquia, de exploração e de polarização.
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Eis porque o verdadeiro inimigo da atual teatro de Oklahoma da civilização burguesa é: aqueles que não acreditam nela! Nada pior para a civilização burguesa do que a não crença nela mesma, não crendo nem no opressor, nem no oprimido, nem na profusão de rostos que ela produz, como mercadorias, por todos os lados, nunca alados. É por isso que as corporações midiáticas chamam de liberdade de expressão a crença de que liberdade de expressão é a livre ditadura planetária delas mesmas, acusando desde logo de malditos a qualquer um que não crê na ilusionista e catártica liberdade de expressão dos donos das mídias, eles mesmos figurantes dos donos do poder bélico, que são figurantes dos donos do poder do petróleo, que são figurantes dos donos do poder bancário, que são figurantes dos donos do poder farmacêutico, que são figurantes dos donos do poder agrário, que são figurantes dos donos dos poderes dos Estados burgueses, que são figurantes de todos os poderes, num vicioso círculo catártico planetário no qual um dono de cenário de produção do teatro burguês é também figurante de outro e os demais, os despossuídos, não passam de figurantes sem posses, sendo mais figurantes, logo mais despossuídos ainda, quanto mais desejam possuir, serem eles mesmos um teatral sistema de bem da civilização burguesa.
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Os meios de comunicação da civilização burguesa são, pois, as tecnologias catárticas da crença geral no grande teatro de Oklahoma do mundo burguês. O Teatro do Desoprimido, tem, assim, um duplo desafio correlacionado: contribuir para desoprimirmos das crenças das e nos cenários produtivos e simbólicos da civilização burguesa, começando estrategicamente pela produção militante de descrenças em relação às corporações midiáticas, comprometidas até o miolo com três crenças fundamentais, na atualidade: a crença no imperialismo ocidental-americano, a crença no estilo americano de vida e a crença nelas mesmas, nas corporações midiáticas, as únicas que são ao mesmo tempo produtoras mundiais de catárticas mentiras e de não menos catárticas publicidades de suas mentiras, vendendo-as como hipercatárticas mentirosas verdades da civilização burguesa.
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Como começo de conversa, o Teatro do Desoprimido não crê, em três monumentais catarses do mundo contemporâneo, a saber: a catarse das corporações midiáticas (e por extensão de todas as corporações teatrais de poder), a catarse no imperialismo ocidental-americano (principal gestor das catarses corporativas), a catarse do estilo americano de vida (modelo de subjetividade não menos catártico da catarse imperialista e da catarse corporativa).
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Tudo que vem dessas três formas de catarses planetárias, o lugar por excelência dos figurantes, deve ser claramente recusado, parodiado, avacalhado, desqualificado pelos atores vitais do Teatro do Desoprimido do mundo todo, mas sempre como começo de conversa, pois, não nos iludamos, catarticamente: o hipercenário planetário da civilização burguesa produziu, na atualidade, o grande teatro de Oklahoma mundial do figurante povo burguês.
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É assim que o Teatro do Desoprimido deve recusar terminantemente a intervenção imperialista no estilo catártico humanitário em qualquer lugar do planeta; intervenção sempre apoiada e catarticamente defendida pelas corporações midiáticas da civilização burguesa planetária. Sob esse ponto de vista, é necessário não hesitar nunca: se existir interesse imperialista e corporativo na destituição do governo da Síria, então sejamos mais pró-governo sírio do que nunca, mas sempre compreendendo que tal governo (e todos, num certo sentido) é parte da tragédia geral da civilização burguesa, razão pela qual deve ser apenas transitoriamente apoiado diante do perigo-mor: o imperialismo ocidental-americano e suas corporações cenográficas do teatro da mais-valia do mundo contemporâneo.
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O mesmo argumento vale, no campo da desopressão, para a Venezuela, Irã, Líbano, Brasil, Argentina, Bolívia, Equador e afinal para literalmente todos os países do mundo forçados a serem meros figurantes do Grande Teatro de Oklahoma das corporações ao mesmo tempo bélicas, econômicas, culturais, midiáticas, tecnológicas e epistêmicas do imperialismo ocidental-americano.
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O Teatro do Desoprimido, portanto, porque não representa, intervém, milita, sabendo que os cenários da farta burguesa já estão previamente montados, não apenas deve contribuir para desmontá-los, mas também antes de tudo saber escolher os cenários que mais urgentemente devem ser desmontados se quisermos trabalhar realmente para o fim das civilizações de hierarquias, de exploração e de polarização, as quais alcançaram, quer queiramos ou não, o seu fim com a civilização burguesa, pela evidente razão de que, se não destituímos o complexo sistema de hierarquia, de polarização e de exploração da atual civilização teatral planetária, não existirá mais humanidade, essa farsante comédia, trágica da pastoral de si mesma, quando atua nos cenários civilizacionais de uma humanidade como figurante (leia-se refém) catártica dela mesma.
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Mas afinal onde está o Teatro do Desoprimido? O Teatro do Desoprimido não existe de tanto existir. Não precisa falar em nome de nada e de ninguém. Nós o produziremos integralmente quando todos nos tornamos desoprimidos, quando não mais existirem hierarquias, explorações, polarizações.
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Comecemos (e há milhares de anos que estamos começando) com toda coragem e ousadia, destituindo, a Igreja do teatro das convictas e voluntárias servidões catárticas da atualidade: as corporações midiáticas. Façamos de seus farsantes cenários, desmontando-os, o início de uma era de protagonistas de nós mesmos, sem precisar de catárticos reconhecimentos do cenário civilizacional burguês.
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As corporações midiáticas, como gestoras mundiais das catarses da civilização burguesa, são o cenário que devemos desmontar necessariamente; e não nos iludamos, burguesmente, a respeito. Sem a destituição de suas pirotecnias ilusionistas planetárias, jamais transformaremos a humanidade em protagonista do instigante palco de beleza, de criação, de felicidade, de bondade, de cuidado individual e coletivo, através de um cenário civilizacional sem opressores e sem oprimidos; de desoprimidas liberdades de expressão, no teatro planetário da infinita liberdade para inventar reais catarses de justiças, na criação lírica de si por meio da criação epopeica de qualquer um, desmontando sem cessar hierarquias, explorações e polarizações.
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Então, no lugar das mídias de opressão do farsante teatro da atualidade, teremos as mídias da desopressão como meios de nossos enleios.
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Luis Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal do Espírito Santo.

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