terça-feira, 27 de agosto de 2013

BREVÍSSIMA HISTÓRIA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO.



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Durante a quase totalidade do período das civilizações grafocêntricas, o controle da escrita por oligarquias religiosas e palacianas, determinou um verdadeiro monopólio econômico, político, cultural, étnico, estético, patriarcal e interpretativo do mundo, através do qual a aristocracia e o clero, como classes letradas, usaram o poder da comunicação escrita a fim de fundamentar religiosamente o domínio delas sobre os povos explorados e humilhados.

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A contribuição mais importante da Reforma Protestante, a partir do século 16, está relacionada com o indireto papel democratizante que cumpriu – com o objetivo divulgar a si mesma – para que mais e mais pessoas tivessem acesso à cultura letrada, através da impressão e distribuição em massa da Bíblia do cristianismo ocidental, reescrita/retraduzida tendo em vista as 95 teses reformadoras propostas por Martinho Lutero em 1517.

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O acesso ativo cada vez mais massificado à escrita colocou na berlinda a aristocracia e o clero, contribuindo para a emergência da burguesia como classe social que se valeu da massificação da cultura letrada a fim de ratificar a sua própria hegemonia, tendo como argumento/promessa/justificativa: igualdade, fraternidade e liberdade, em conformidade com credo da Revolução Francesa de 1789.

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A burguesia estrategicamente passou a usar a cultura letrada massivamente com o objetivo de divulgar a si mesma, através da autopromoção de seu modelo de vida, por meio da indústria monopólica gráfica, cujo ciclo incluía no mesmo pacote a produção/distribuição de papeis, editoras e donos de jornais.

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O hegemônico ciclo burguês de controle monopólico da cultura letrada procurou determinar e circunscrever o que as grandes massas deveriam saber, sentir e desejar, tendo como exemplo – dentre outros – os romances românticos do século 19, publicados em folhetins de jornais de grande circulação, os quais sedimentavam ou contribuíam para sedimentar uma mentalidade e uma subjetividade burguesas entre os segmentos sociais medianos, conhecidos genericamente como classe média e também entre as classes populares, através da produção simbólica de conteúdos letrados voltados para esse e aquele segmento de classe.

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Como contraparte à burguesia, diferentes segmentos sociais organizados passaram a usar a escrita com o objetivo de expressar suas demandas, desejos, expectativas, ao mesmo tempo em que intercambiavam experiências, informações, culturas e saberes revolucionários, cobrando da burguesia o cumprimento de suas promessas de igualdade, de fraternidade e liberdade.

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O aprofundamento do intercâmbio planetário da cultura letrada revolucionária, tecido e entretecido através da luta, foi o principal motivo da expansão dos direitos econômicos, políticos, sociais e civis, principalmente no contexto europeu e norte-americano, através do estado de bem-estar social, mantido, ainda assim através da exploração e sofrimento dos povos periféricos.

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Um campo promissor de saberes, de artes e movimentos sociais revolucionários intensificaram suas perspectivas e práticas, dilatando-se e intercambiando afetos e desejos, através do aprofundamento planetário da democratização crítica, criativa e inclusiva da cultura letrada.

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Sem esse intenso processo revolucionário de democratização da cultura letrada, as conquistas emancipatórias no interior da modernidade não seriam possíveis.

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O fim da hegemonia da cultura letrada surge com o advento do rádio e da televisão, período que inaugura a atual época em que vivemos: a midiocêntrica.

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Tal como a época em que a cultura letrada estava sob o controle restrito da aristocracia e do clero, na qual ambas as classes sociais justificavam teologicamente seus privilégios e despotismos através de um monumental monopólio interpretativo da vida em sociedade, hoje igualmente vivemos sob o signo do despotismo midiático, pela singela razão de que suas tecnologias e seus conteúdos estão sob o domínio igualmente despótico, religioso e monopólico de uma oligarquia midiática planetária, intimamente associada com a burguesia industrial, financeira e bélica do capitalismo rentista contemporâneo.

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Por essa razão, não é precisamente em função do fim do bloco dos países socialistas, no final da década de 80, que os gestores do capitalismo passaram a avançar, como nunca, sobre os direitos sociais, econômicos, civis, políticos de povos e países, como estamos acostumados a pensar. Mais precisamente é porque os ecos emancipatórios da cultura letrada foram praticamente varridos do mapa a partir da década de 70 do século passado, através da mundialização midiática da humanidade, num contexto extremamente adverso, pela singela razão de que tal mundialização se encontrava e se encontra nas mãos de uma oligarquia empresarial planetária que age em defesa econômica, política, estética, publicitária, subjetiva, informativa, cultural, bélica de seus irmãos siameses do mundo agrário, industrial, especulativo, bélico, linguístico, simbólico, étnico, patriarcal, nacional, religioso.

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É, pois, em função do monopólio interpretativo, dissimulado, inventivo e invertido dos acontecimentos contemporâneos, manietado por uma oligarquia midiática planetária, que a fase atual do capitalismo, conhecida como neoliberal, avança sobre todos os direitos civis, sociais, trabalhistas, econômicos, corporais, estéticos e políticos, conquistados a duras penas – ainda que parcialmente – no interior da época em que a cultura letrada estava vivendo um intenso processo de democratização emancipatória crítica e criativa, promovendo, com isso, um verdadeiro retrocesso medieval, cartorial e pré-moderno da humanidade, em todos os âmbitos, no cultural, no econômico, no étnico, no epistemológico, no de gênero.

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Tal retrocesso pré-moderno da humanidade é ao mesmo tempo a causa e a consequência da barbárie do mundo contemporâneo, sendo, pois, igualmente a causa e consequência da extrema violência – simbólica, material, bélica, ecológica, alimentar – vivida e sofrida, passiva e ativamente, pelos mais diferentes povos do planeta.

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Sem o monopólio midiático mundial, praticamente sem oposição, de tão hegemônico, o neoliberalismo, em sua forma financeira e econômica, não teria avançado, como avançou, sobre patrimônio estatal e os precários e incipientes direitos econômicos e laborais dos povos do terceiro mundo, como ocorreu a partir da década de 90.

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De igual forma, sem o monopólio midiático mundial, sob o controle antes de tudo da oligarquia americano-sionista, o neoliberalismo financeiro e econômico não estaria destruindo, num ritmo acelerado, o estado de bem-estar social dos países da Europa, assim como de todos os países até então chamados de primeiro mundo, como EUA, Japão, Israel, Austrália, Canadá, em ritmos diferentes nuns e noutros, tendo em vista a relação de forças e os interesses existentes em jogo em tais e quais lugares.

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Tendo em vista a prosa do mundo e o mundo da prosa, não é preciso inventar a roda para construirmos uma sociedade mais justa e digna, para os povos do planeta, com solidariedade, igualdade e liberdade sem fim e sem discriminação para tod@s. O mesmo movimento, inclusivo, liberador e revolucionário que o ocorreu no interior da cultura letrada – quando estava sob o manto mortuário totalizador de uma civilização grafocêntrica, sob o domínio da aristocracia e do clero – deve ocorrer no interior da civilização midiocêntrica, sob o controle de uma missionária oligarquia empresarial comprometida, porque rica, com e como os ricos e hiper-ricos do planeta.

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Embora tal movimento de democratização da cultura midiocêntrica esteja ocorrendo em diferentes partes do mundo, sob diferentes formas, experiências e perspectivas, seu ritmo não pode ser mais o mesmo do que ocorreu no interior da cultura letrada, seja porque sabemos o caminho das pedras, seja porque a humanidade – a vida na Terra – não tem mais tempo para esperar dezenas ou mesmo centenas de anos para repetir o mesmo caminho emancipatório já trilhado dentro da cultura grafocêntrica, repetindo-se, como Sísifo, o esforço da liberação da pena de ser explorada, humilhada, assujeitada, assassinada, em benefício de poucos, para poucos.

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O caminho da emancipação da humanidade foi parcialmente trilhado no interior da cultura letrada, através da luta pela sua democratização crítica, criativa, cultural, civilizacional. Se quisermos interromper os retrocessos que estamos vivendo hoje; se quisermos frear as táticas, estratégias e astúcias da oligarquia racista que manda e desmanda no mundo, pondo em risco a vida na Terra através de uma hecatombe atômica, o caminho é este: ocupar sem demora o midiocentrismo oligárquico mundial, democratizando-o e descentralizando-o em benefício da infinita liberdade coletiva.

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É aí que devemos concentrar nossas energias emancipatórias; nossa potência coletiva de amor à vida comum, no comum, vivendo-a nos libertando de toda e qualquer forma de oligarquia, usurpação de tudo que pulsa, existe, ama, fora da escravidão de nós pela gente mesmo, transformando os “plim-plins” globais em batuques de mídias sem centro, sem origem, sem castas, sem donos, comumente de ninguém, porque expressão corajosa, digna, criativa, solidária, fogosa de qualquer um.

(Texto de Luís Eustáquio Soares)

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Luis Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura no Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal do Espírito Santo.

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