sábado, 19 de outubro de 2013

ANÁLISE DO LIVRO “O OUTRO PÉ DA SEREIA”, DE MIA COUTO.


“O outro pé da sereia” é um romance da pós-colonialidade que pretende realçar uma configuração literária que questiona e desafia não apenas os estereótipos tradicionais e da nossa contemporaneidade, mas também alguns dos princípios universais que se prendem com os conceitos de identidade, raça, história e tradição. O livro versa sobre as principais questões do mundo atual: a identidade, o pós-colonialismo, o sentido de pertencimento e o choque entre choque entre culturas.

O romance é constituído por duas estórias paralelas, separadas por um abismo temporal de cinco séculos. A primeira viagem (1560): missão de jesuíta Dom Gonçalo Silveira ruma a Moçambique com o propósito de realizar a 1ª incursão católica na corte do reino Monomotapa. Evangelizar o rei e tirar a África das trevas. Passada a bordo de um navio negreiro que faz a travessia do Índico de Goa à Costa Oriental africana, viaja o Padre Manuel Antunes, cuja alma sofre uma estranha metamorfose: está a “mudar de raça”.  Manuel Antunes sonha com Kianda (Nossa Senhora) nua, o sonho é o início de uma crise religiosa e identitária. Ele decidira ser padre por conta de um amor proibido e abdica da batina por perceber-se um homem diferente, após o contato com os africanos. Há a possibilidade também de Antunes ter se tornado negro no momento da sua morte, num incêncio. Como a fronteira entre mortos e vivos é líquida, ele pode ter gostado de ser negro, ter se tornado mais critíco, questionador das atrocidades que a Igreja Católica cometia contra os negros, revolucionário, ter abandonado o celibato, tudo após sua morte, após ter-se livrado de seu corpo branco. O enegrecimento de M. Antunes pode ser sido fantástico ou onírico: “Negro não é uma raça. É um modo de viver”. Como afirma Hall: “A identidade costura o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos unificados e previzíveis”. Trocar de cor é uma viagem. M. Antunes gosta da “nova cor”.

Isto proporciona sérios atritos com D. Gonçalo da Silveira, o Inquisidor, membro da Companhia de Jesus, encarregue de transportar uma estátua de madeira que representa a imagem da Virgem Maria. Viaja na Nau Nossa Senhora da Ajuda. A companhia de Jesus pregava que “o negro não tem alma”, precisando assim ser salva (batizado). Como afirma Bhabha: “Os olhos do homem branco destroçam o corpo do homem negro e nesse ato de violência epistemológica seu próprio quadro de referência é transgredido, seu campo de visão perturbado”. Esta estátua causa enorme perturbação entre os escravos, que viajam no porão do referido do navio, por associarem aquela figura feminina à divindade das águas, dos mares e dos rios – Kianda – aquela que no panteão dos orixás brasileiros corresponde à deusa- sereia Iemanjá.  
Outro personagem que muda durante as viagens é Nimi Nsundi. D. Gonçalo quis embranquecer sua alma com o batismo. Ele se ajoelha diante da Virgem, mas presta culto a Kianda. Nimi Nsundi salva a estátua, mas depois arranca-lhe um dos pés. Ele se identifica com sua representação religiosa, acolhe o ícone do outro (seus opressores), mas ressignifica-a. Dia Kumani é subalterna. Por se jogar às chamas e não se queimar, Dia foi excluída e acabou se tornando escrava”. Encontra no Nimi Nsundi na nau. 2 escravos: paradigmas antitéticos, o da resistência (Dia) e o da assimilação (Nimi). “Nsundi” é o nome de uma das famílias reais do Reino do Congo, o que talvez explique sua rebeldia e nobreza. Na verdade, lealdade disfraçada de resitstência.
A questão da identidade entrelaça-se com o tema da viagem. Nomes que deveriam mostrar uma subjetividade, ressaltam, nestes casos, a falta dela. O nome da pessoa é o seu destino. Mwadia (canoa), Zero Madzero (sua ausência na vida e na morte). Lázaro Vivo (Vida pós-morte. Alusão a ressurreição de Lázaro). Jesustino (Jesus sem tino). Zeca Matambira (Dinheiro). Benjamim Southman (“homem do sul”, sul escravagista dos EUA). A troca de nome na África só ocorre na puberdade – período do mais intenso conflito identitário do ser humano. Benjamim Southman ganha um novo nome, “Dere Mankaderi”. No livro, há 3 perfis do negro africano: no século XVI (1560-1), no século XXI (2002) e num tempo psicológico (mundo onírico). Há o branqueamento (negação da negritude) e a mulatização. “Esquecer quem é”. 
Esquecer do passado (sofrimentos e perdas). Rosie tenta se parecer com o outro. Nega sua negritude a vida toda. Há também a “Árvore das voltas” ( quem rodasse 3 vezes em seu redor perdia a memória. A árvore simboliza a memória. O rito de rodear a árvore, cumprido pelos escravos, tinha o fim de fazê-los esquecer seuas raízes africanas). Outros casos da identidade: 1º caso: Madzero deixa de ser machista. 2º caso: Constança reclama que o manda nela como deveria. 3º caso: O pai de Mwadia, Edmundo Esplendor Marcial Capitani aguardou a vida inteira que seus feitos como soldado fossem reconhecidos, como não o foram, deixa por escrito que quer ser enterrado como mulher. 
Forja-se a imagem de uma santa para reinventar uma deusa, forja-se a m orte para inventar a vida (e vice-versa), forja-se a identidade para garantir a sobrevivência.
Reflexão em torno das construções de que o colonialismo ocidental é responsável no processo de edificação de uma identidade histórica, geográfica, lingüística e cultural africana. Subversão de uma visão dicotômica entre uma África pré-colonial, estática e tradicional, e uma outra, moderna, moldada, ou melhor, inventada pelo colonialismo português. Como afirma Carlos da Cruz: “As identidades pós-coloniais já nascem em crise, pois as ex-colônias são países novos, politicamente independentes após a Segunda Guerra Mundial, sem uma identidade nacional previamente estabelecida. Isso por terem sido criados artificialmente pelos europeus na colonização exploratória capitalista”.
2 narrativas na qual não se sabe se certos personagens estão vivos ou mortos e onde a História é enterrada após ser revisitada. Fotografias dos “mortos em vida”. As pessoas “mortas” continuam a envelhecer nas fotografias. A memória pode ganhar nova vida. Antes só os europeus escreviam a história do negro, faziam-no baseados num discurso de dominação. Vide a “Cia de Jesus”, em que jesuítas cataquizavam os povos “impuros”. O fato verídico como ficção. O que é imaginário? O que é real? A narrativa foca nessa “busca das raízes” levada pelos 2 estrangeiros. “Invenção da África. Outro ponto que chama a atenção é a passividade dos personagens diante dos estranhos acontecimentos.
Aqui, nossa senhora (Nzuzu ou Kianda), ícone afro-católico, é fronteira líquida entre o século XVI e a pós-modernidade. É um elo entre tempos e culturais diferentes. A santa, Kianda, vai trazer à tona o passado, para que se repense o que é ser Moçambique.
A outra estória é passada no tempo presente na narrativa, em 2002, em Moçambique, e protagonizada é a jovem Mwadia Malunga, filha da ex-costureira Constança e de Edmundo Capitani, reformado do antigo Exército Colonial. Constança casa em segundas núpcias com o alfaiate de origem goesa, Jesustino, encetando uma vida de sucessivas desilusões. Mwadia sai de Antigamente e volta a Vila Longe para levar a Santa que foi encontrada casualmente num rio por Madzero. Ele também encontrou uma “estrela” e sonha que suas mãos se juntavam como 2 chamas. Sonho de algo ocorrido no plano da ficção histórica. Mwadia: relação com o mágico e o oculto. A chegada dos americanos faz com que Mwadia se torne a personagem central da trama, isso se dá pelo seu lado místico/ oculto. Em um dos transes, Mwadia relata a travessia de Gonçalo Silveira, a de Nimi Nsundi e de Dia Kumani. Porém, os livros históricos são a via de acesso às visitações verdadeiras. Mwadia fica surpresa quando o chefe dos correios disse que ela lá esteve há pouco. Ela saiu de Vila Longe há tempos. “Mwadia chega a conclusão de que Vila Longe e seus habitantes há muito haviam deixado de existir. Os habitantes ansiavam pelo esquecimento. Mestre Arcanjo, o barbeiro, revela que é necessário “esquecer para ter passado, mentir para ter destino”. Apenas a História morre e os mortos não se vão. Aqui, “não se sabe se a morte é concreta ou metafórica. Os mortos estão vivos (na memória) ou os vivos estão mortos (em suas realidades)”, aponta Lise Mary Dourado.
A chegada do casal americano está ligada a “estrela” que Madzero encontrou. Casal: caráter artificial das convicções ocidentais em torno do passado colonial e da chamada tradição “autenticamente africana”.  Benjamim Southman (agente secreto em missão): mito das origens. Tradição: invenção de verdades socialmente aceitáveis. O “Colonialismo” negro espanta Southman, pois ele tem visão romântica da Áfric (concepção euroamericana).
Lázaro Vivo é adepto à tecnologias. Muda de “nyanga” para “adivinho”. Assim, ele não sofre preconceito. Não é globalização e sim exportação/ importação de sinais. Sinais brilhantes e apelativos. Repetição de uma relação de dominação que se oculta sob a forma da globalização. Tem anciedade pelo novo e é detentor do conhecimento.

(Texto de Ricardo Salvalaio)
REFERÊNCIAS

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.

BHABHA, Homi R. O local da cultura.

CRUZ, Carlos Eduardo Soares da. Uma estrela que atravessa o tempo: Outro pé da sereia, de Mia Couto.

DOURADO, Lise M. A. O outro pé da sereia: fronteira líquida entre o velho e o novo discurso identitário africano e afro-diaspórico.


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